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Guerras e Assassínio

01/11/2011 12:51

“Se há tanta paz no azul que o céu abriga

e há tanto azul que tanto bem nos faz,

se há tanto azul e há tanto céu, me diga:

- Por que é que o Homem não encontra a Paz?...” [1]

Luna Fernandes

            Mais do que nunca, os seres humanos clamam pela paz! Ontem, como hoje, existiram anseios por alcançá-la. A paz é celebrada em eventos públicos, em discursos emocionados e até por governos de Nações. Estes, no entanto, desmentem-se, ao assumirem, muitas vezes, posições contraditórias, quando defendem a agressão e a violência pela guerra. Desmentem-se até quando, omissos, recusam-se a opinar a respeito de atrocidades que são cometidas contra outros seres humanos, quase sempre de etnias ou nações “mais fracas”, com menor capacidade econômica para resistirem. A guerra foi objeto de preocupação de Allan Kardec que, na parte dedicada às Leis Morais da vida, no capítulo da Lei de Destruição, abordou-a. Assim, na pergunta 742 o Codificador indaga

Que é o que impele o homem à guerra?

“Predominância da natureza animal sobre a natureza espiritual e transbordamento das paixões. No estado de barbaria, os povos um só direito conhecem - o do mais forte. Por isso é que, para tais povos, o de guerra é um estado normal. À medida que o homem progride, menos freqüente se torna a guerra, porque ele lhe evita as causas, fazendo-a com humanidade, quando a sente necessária.” [2]

            É de se perceber que nossa inferioridade espiritual é responsável pela escolha que fazemos da guerra para resolvermos nossas desavenças, ou mesmo para adquirirmos poder econômico. O combustível da agressividade e o extravasar das paixões mais brutas encontram ambiente perfeito nesta situação. Recentemente, o Wikeleaks (que é uma organização sediada na Suécia que publica documentos vazados de governos ou empresas sobre assuntos sensíveis), publicou, em 2010, um vídeo onde soldados estadunidenses matam civis iraquianos de maneira banal. [3] Atiram em pessoas que se deslocavam em vans onde parecia haver uma criança dentro. Nota-se, no tom de voz do militar, todo um prazer bestial em fazer mal àquelas pessoas em situação desigual de força. Na estatística oficial de guerra, estas vítimas seriam descritas como “efeito colateral”.

            Quando se fala em horrores da guerra, recorda-se da Segunda Guerra Mundial e da figura de Adolf Hitler. Durante este período, a discriminação e a perseguição aos judeus foram implantadas na Europa ocupada pela Alemanha nazista. Países que simpatizavam com ela, ou que buscavam manterem-se neutros, eram pressionados a assumirem semelhante postura.

O método de matar era tema de discussão entre os nazistas. Otto Ohlendorf, comandante do Einsantzgruppen A, usava o método de fuzilamento, ao invés do tiro na nuca em que o soldado ficava perto da vítima, o que poderia dar margem a tentativas de reação de quem se pretendia matar. Essa obsessão de encontrar uma maneira de matar em massa e de forma impessoal acabou desembocando na utilização dos caminhões / câmaras de gás móveis. Estes eram adaptados de forma que o escapamento ficasse voltado para dentro da carroceria e o gás fosse produzido pelo funcionamento do motor. A asfixia demorava 15 minutos. Ao abrir as portas do caminhão, os mortos tinham a face desfigurada e os corpos cobertos de fezes. Os nazistas obrigavam os judeus a retirarem os corpos e os enterrarem. O método foi abandonado porque o número diário de mortos estava aquém da pretensão nazista de matar milhões de judeus. [4]

            Adotaram, então, as Câmaras de Gás. E procuravam fazer tudo com muita ordem.

Quando os judeus chegavam aos campos de extermínio, os nazistas mentiam-lhes sobre seu destino. As câmaras de gás eram disfarçadas de banheiros com chuveiros para desinfecção. Na ante-sala das câmaras, os alemães diziam aos judeus que estes iam tomar um banho. As vítimas se despiam e recebiam cabides numerados com a recomendação de não esquecer onde tinham deixado a roupa. Podiam receber também sabão. Muitas vezes eram obrigados a entrar com os braços levantados para ocupar menos espaço. Os guardas impediam conversas entre os presos do campo e os recém-chegados. Pretendiam que caminhassem sem pânico e em boa ordem para a câmara de gás. [5]

            Depois os corpos eram recolhidos por outros judeus que, trabalhando, tinham uma sobrevida maior.

            Para mim, soa muito estranho, pelo menos moralmente, a atitude do Estado judeu Israel em promover uma política de extermínio de um povo - o palestino -, a semelhança do que os judeus sofreram do nazismo. Israelenses que massacram palestinos, alemães que massacraram judeus (e Testemunhas de Jeová, ciganos, homossexuais, e outros) e estadunidenses que exterminam civis iraquianos e afegãos demonstram, com suas atitudes, o que os Espíritos codificadores disseram a Kardec: o direito do mais forte prevalecendo no estado de barbaria... E estamos falando de século XX (Segunda Guerra Mundial) e século XXI.

             Kardec, na pergunta 743, indaga aos Espíritos da Codificação se em algum dia a guerra desapareceria da face da Terra, ao que eles respondem positivamente, endossando que isso ocorreria “quando os homens compreenderem a justiça e praticarem a lei de Deus. Nessa época, todos os povos serão irmãos.” [6] A justiça que decorre do entendimento do fazer aos outros aquilo que gostaríamos que os outros nos fizessem, de acordo com o que nos ensinou Jesus. Todos aqueles que reforçam o divisionismo entre as pessoas, que procuram hierarquizar pessoas, taxando alguns de inferiores desejam dominar, desejam poder. Na escala dos povos acontece o mesmo, ainda que isso não seja declarado explicitamente, como ocorria com o Nazismo. Temos que avisar aos ultra-belicosos de plantão que a Terra não tem fronteiras. A natureza (apelido de Deus) deu-nos recursos naturais sem estipular quem deveria ter mais ou menos. Segundo Mahatma Gandhi, “assim como o culto do patriotismo ensina que o homem deve morrer pela família, e a família pela pátria, assim, também, deve a pátria morrer, se necessário pelo mundo.” [7] Quando a pátria morrer pelo mundo, quando vivermos num mundo efetivamente sem fronteiras, como diz uma propaganda de operadora de telefonia móvel, então estaremos no caminho para vivermos como irmãos.

            Na questão 744 Kardec pergunta o “que objetivou a Providência, tornando necessária a guerra” [8], ao que os Espíritos respondem: A liberdade e o progresso. Não satisfeito com a resposta, torna a perguntar

a) - Desde que a guerra deve ter por efeito produzir o advento da liberdade, como pode freqüentemente ter por objetivo e resultado a escravização?

“Escravização temporária, para esmagar os povos, a fim de fazê-los progredir mais depressa.” [9]

            Às vezes gozamos de liberdade legal, amparada pela lei, sem dispormos dela no nosso mundo íntimo, vítimas que somos da escravização pelos nossos vícios, materiais ou morais. Hábitos ruins funcionam para nós como poderosas correntes que nos prendem ao círculo de reencarnações inferiores. A dor, que nos surge violenta, movimenta-nos, quando negligenciamos o aprendizado pelo amor espontaneamente. A guerra opera com a dor de maneira coletiva. Tira-nos do lugar, impele-nos para frente, pelos sofrimentos que provoca. As vítimas das guerras podem libertar-se da tirania do egoísmo, quando constroem redes de solidariedade para ampararem-se mutuamente. Podem libertar-se da preguiça, no esforço de reconstrução de suas próprias vidas destruídas. Se levarmos em conta que Deus não joga dados e que, portanto, ninguém sofre por acaso, se alguém sofre na guerra, não sofre por acaso. Seu sofrimento é a colheita de sofrimentos outros que andou semeando nos jardins dos outros, porque a vida nos devolve, agora ou depois, o que lhe damos. Ao resgatarmos nossos débitos passados, em expiações dolorosas, crescemos. Estamos aptos a novamente caminhar na direção de Deus.

Há outro aspecto do progresso que temos que levar em conta, o material. Alexander Fleming, trabalhando num hospital na França durante a Primeira Guerra Mundial, desenvolveu técnicas que melhoravam o tratamento de feridas infectadas. Em Agosto de 1928, quando saiu de férias

por esquecimento, deixou algumas placas com culturas de estafilococos sobre a mesa, em lugar de guardá-las na geladeira ou inutilizá-las, como seria natural.

Quando retornou ao trabalho, em setembro, observou que algumas das placas estavam contaminadas com mofo, fato que é relativamente freqüente. Colocou-as então, em uma bandeja para limpeza e esterilização com lisol. (...)

O fungo foi identificado como pertencente ao gênero Penicilium, donde deriva o nome de penicilina dado à substância por ele produzida. Fleming passou a empregá-la em seu laboratório para selecionar determinadas bactérias, eliminando das culturas as espécies sensíveis à sua ação.

 A descoberta de Fleming não despertou inicialmente maior interesse e não houve a preocupação em utilizá-la para fins terapêuticos em casos de infecção humana até a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939.

 Em 1940, Sir Howard Florey e Ernst Chain, de Oxford, retomaram as pesquisas de Fleming e conseguiram produzir penicilina com fins terapêuticos em escala industrial, inaugurando uma nova era para a medicina - a era dos antibióticos. [10]

            Na questão 745 Kardec indaga aos Espíritos da Codificação o “que se deve pensar daquele que suscita a guerra para proveito seu”, ao que eles respondem: “grande culpado é esse e muitas existências lhe serão necessárias para expiar todos os assassínios de que haja sido causa, porquanto responderá por todos os homens cuja morte tenha causado para satisfazer à sua ambição.” [11] Segundo o historiador Luiz Mir, 80% dos crimes são de inspiração econômica.[12] Na guerra, atualmente, muitos ganham dinheiro. A indústria armamentista fatura alto, bem como a construção civil, no “esforço de reconstrução” dos países destruídos, além do sistema financeiro, através da concessão de empréstimos para estas obras. A invenção do terrorismo, após a queda do muro de Berlin e o fim da União Soviética, certamente serviu para que o mercado de armas aquecesse, após a Guerra Fria (que não foi nada fria em países de Terceiro Mundo). Nos conflitos que observamos no Oriente Médio, da década de 1990 até o presente, notamos o desvelado interesse no controle do petróleo, recurso natural que caminha a passos largos para o esgotamento, sendo ainda importante matriz energética no mundo, apesar de pesquisas voltadas para a utilização de água como combustível.

            Quase sempre, ao pensarmos em um “modelo de guerra” remetemo-nos à Segunda Guerra Mundial, pela sua grandeza de proporções. Segundo John Keegan, houve 20 milhões de mortes na Primeira Guerra e 50 milhões na Segunda. [13] Somente de judeus mortos, estima-se que tenham sido em torno de 6 milhões de almas. E nos lembramos de Adolf Hitler, colocando-o na categoria de primeiro culpado do combate que massacrou a tantos. Mas... Será que ele agiu sozinho? Será que seus contemporâneos alemães não se identificavam com os valores que ele defendia? Hitler fez a guerra sozinho? A Alemanha, ao final da guerra, podia ser considerada um país derrotado ou um país libertado? Na França ocupada pelos nazistas na Segunda Guerra (de Vichy), muita gente colaborou com o regime nazista e, depois da derrota alemã, com a França novamente livre, foi construída a imagem de que todos foram resistentes à ocupação nazista. No Brasil, no período de redemocratização após o Golpe Civil-Militar de 1964, as reconstruções das memórias colocaram, como defensores da democracia, elementos que anteriormente simpatizaram ou colaboravam com a direita golpista. Essas responsabilidades individuais, graduadas de acordo com o papel que cada um teve no conflito, serão levadas em conta pelo maior e mais perfeito tribunal de justiça que dispomos: nossa consciência, onde estão inscritas as leis de Deus. As nacionalidades, os grandes grupamentos humanos, pelos valores que compartilham, pelas atitudes que assumem ou deixam seus governantes assumirem, responderão perante a Lei Divina. A cada um segundo suas obras.

            Recordo-me da narrativa do Espírito André Luiz, em Nosso Lar, a respeito da maneira como observava os efeitos da Segunda Guerra Mundial. Segundo ele, as nações agressoras não são consideradas inimigas, mas desordeiras, sendo necessário reprimir-lhes o desequilíbrio.

Observei, então, que as zonas superiores da vida se voltam em defesa justa, contra os empreendimentos da ignorância e da sombra, congregados para a anarquia e, conseqüentemente, para a destruição. Esclareceram-me os colegas de trabalho que, nos acontecimentos dessa natureza, os países agressores convertem-se, naturalmente, em núcleos poderosos de centralização das forças do mal. Sem se precatarem dos perigos imensos, esses povos, com exceção dos espíritos nobres e sábios que lhes integram os quadros de serviço, embriagam-se ao contacto dos elementos de perversão, que invocam das camadas sombrias. Coletividades operosas convertem-se em autômatos do crime. Legiões infernais precipitam-se sobre grandes oficinas do progresso comum, transformando-as em campos de perversidade e horror. Mas, enquanto os bandos escuros se apoderam da mente dos agressores, os agrupamentos espirituais da vida nobre movimentam-se em auxílio dos agredidos. [14]

            Kardec torna a indagar aos Espíritos se é crime aos olhos de Deus o assassínio, e eles respondem-lhe que sim, sendo mesmo um grande crime, uma vez que “aquele que tira a vida ao seu semelhante corta o fio de uma existência de expiação ou de missão.” [15] Um Espírito deixa de ter a chance, na carne, de crescer espiritualmente. Deixa de lado uma programação de expiação ou provas que o faria tornar-se melhor. Mas como nada acontece por acaso, se a pessoa é vitimada, não está sendo injustiçada por Deus. No seu passado espiritual, muito provavelmente, fez vítimas. Ninguém nasce programado para ser assassinado, mas ninguém é assassinado por acaso. Aquele que assassina torna-se instrumento da Lei que faz com que o assassinado resgate erros de outras encarnações (quem sabe, até o de ter matado alguém). Mas o fato de tornar-se instrumento da lei não o isenta. “Ai do mundo, por causa dos escândalos; porque é mister que venham escândalos, mas ai daquele homem por quem o escândalo vem!” [16]

            A culpabilidade do assassínio é variável. Deus, segundo a resposta à pergunta 747, “julga mais pela intenção que pelo fato.” [17] Mesmo o Direito Penal distingue o homicídio doloso (quando existe a intenção explícita de matar) do homicídio culposo (quando não há intenção de matar). Empunhar uma arma para tirar a vida de alguém é considerado de uma maneira e atropelar acidentalmente alguém (sem embriaguês ou desrespeito às leis de trânsito) é considerado de outra forma, tanto na lei humana, quanto na Lei Divina.

            Em caso de legítima defesa, segundo os Espíritos na pergunta 748, desculpa Deus o assassínio, sendo que os Espíritos observam que “desde que o agredido possa preservar sua vida, sem atentar contra a de seu agressor, deve fazê-lo.” [18] Durante a guerra, se constrangido pela força, o homem não tem culpa dos assassínios que cometa. Pela força podemos entender por ordem de seus superiores. Penso que ainda não é tranqüilo, para o pacifista, recusar-se a combater. As penalidades, acredito, variaram muito na história. Imagino que em alguns casos essa penalidade possa ter sido até a morte, quando não a prisão, como o caso de Cassius Clay, boxeador estadunidense, também conhecido como Muhammad Ali (porque convertido ao Islamismo), que se recusou a lutar na Guerra do Vietnã. Assumir o risco que implicam a opção de não matar é muito mais meritório que escolher a possibilidade de matar, aceitando uma convocação para alguma guerra.

            Kardec indaga aos Espíritos qual crime é mais condenável aos olhos de Deus, se o infanticídio ou o parricídio, ao que as inteligências codificadoras respondem que “ambos o são igualmente, porque todo crime é um crime.” [19]

            Por fim, na pergunta 751 temos

Como se explica que entre alguns povos, já adiantados sob o ponto de vista intelectual, o infanticídio seja um costume e esteja consagrado pela legislação?

“O desenvolvimento intelectual não implica a necessidade do bem. Um Espírito, superior em inteligência, pode ser mau. Isso se dá com aquele que muito tem vivido sem se melhorar: apenas sabe.” [20]

            De quais povos Kardec estaria se referindo? A pergunta não nos deixa claro. Ele e seus contemporâneos sabiam onde estava acontecendo isso. Além disso, penso que por dever de caridade, buscando amenizar culpas e, até mesmo, pensando no alcance que teria O Livro dos Espíritos, buscou não ser tão explícito. Segundo a historiadora Vivian da Silva Paulitsch, 

A percepção dentro da comunidade médica contemporânea, entretanto, era de que o infanticídio e o aborto estavam sendo praticados em um alarmante ritmo. (...) uma mudança ocorreu no tipo de mulher que costumavam dirigir-se ao aborto – da “garota seduzida” do começo do século XIX, para depois de 1880, a “mulher casada buscando o controle do tamanho da sua família”. [21]

            A autora refere-se à Europa do século XIX, de Kardec! Mas a pergunta permanece: Onde era realizado? Segundo a historiadora, na primeira metade do século XIX, na Europa, países como Inglaterra, Alemanha e França possuíam leis cada vez mais rigorosas para as práticas de aborto e infanticídio (...)”. [22] Países considerados de vanguarda para a civilização, tanto na época de Kardec, quanto nos dias de hoje. Não foram nos estadunidenses que inventaram a bomba atômica e a lançaram no Japão? Não foram eles que usaram contra os vietnamitas do Norte o napalm, uma arma química que provoca queimaduras de até 5º grau (que atingiam músculos e até ossos)? Não foram eles que usaram (ainda usam?) balas de urânio empobrecido contra as populações do Iraque?

Segundo uma audição no Congresso da Comissão de Benefícios por Incapacidade de Veteranos, mais de meio milhão de veteranos sofrem de doenças não diagnosticadas, as quais podem ou não ser devidas à radiação. A doença da radiação é considerada por alguns investigadores como a principal causa da síndrome da Guerra do Golfo — uma doença que envolve o enfraquecimento do sistema imunitário que muitos veteranos da Guerra do Golfo têm relatado. [23]

                Todos esses seres humanos viveram muito, aprenderam bastante em matéria de tecnologia, mas não aprenderam a ser humanos! Enquanto vamos aprendendo a ser mais humanos, tenhamos em mente que

É o espírito de cooperação, não o de confronto, que faz o mundo girar. A maioria das pessoas passa a maior parte de seus dias em um espírito de companheirismo e busca por quase todos os meios evitar a discórdia e propagar divergências. [24]

            Temos que aprender a manter este espírito de cooperação que o historiador da guerra conseguiu captar da essência humana e levá-lo a agir quando injustiças sejam cometidas contra os mais fracos, bem como também vigiarmos e orarmos a fim de que os preconceitos de que ainda não nos despimos considerem normal pessoas serem machucadas por outras pessoas, que ainda não descobriram sua humanidade.



[1] FERNANDES, Luna. Se há tanta paz. Disponível em: https://www.marabmi.com/Paz Último acesso em 5 de Outubro de 2011.

[2] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 1995, p.351. Grifos meus.

[3] Vídeo: Wikileaks mostra como americano mata civis no Iraque. Disponível em: https://www.conversaafiada.com.br/video/2010/12/12/video-wikileaks-mostra-como-americano-mata-civis-no-iraque/ Último acesso em 5 de Outubro de 2011.

[4] OLIVEIRA, Marco Aurélio Gomes. Anti-semitismo e suas conseqüências. Disponível em: https://transformandomundo.blogspot.com/2008/07/o-anti-semitismo-e-suas-consequncias.html Último acesso em 5 de Outubro de 2011.

[5] Idem.

[6] KARDEC, Allan. Op. cit., p. 351.

[7] Mahatma Gandhi. Disponível em: https://cadernoaquariano.blogspot.com/2011/04/mahatma-gandhi.html Último acesso em 5 de Outubro de 2011.

[8] KARDEC, Allan. Op. cit., p. 351.

[9] KARDEC, Allan. Op. cit., p. 352.

[10] RESENDE, Jofre M. FLEMING, O ACASO E A OBSERVAÇÃO. Disponível em: https://usuarios.cultura.com.br/jmrezende/penicilina.htm Último acesso em 5 de Outubro de 2011.

[11] KARDEC, Allan. Op. cit., p. 352.

[12] MIR, Luiz. Guerra Civil. São Paulo: Geração Editorial, 2004, p. 505.

[13] KEEGAN, John. Uma história da guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 80.

[14] XAVIER, Francisco Cândido. Nosso Lar. Rio de Janeiro, FEB, 1996, p. 226. Disponível em: https://www.sej.org.br/livros/lar_br.pdf Último acesso em 6 de Outubro de 2011. Grifos meus.

[15] KARDEC, Allan. Op. cit., p. 352.

[16] Mateus, 18:7.

[17] KARDEC, Allan. Op. cit., p. 352.

[18] Idem.

[19] KARDEC, Allan. Op. cit., p. 353.

[20] Idem.

[21] PAULITSCH, Vivian da Silva. Aborto e Infanticídio: Representações na arte do século XIX. Disponível em https://anpuhsp.org.br/downloads/CD%20XVII/ST%20XXVII/Vivian%20da%20Silva%20Paulitsch.pdf Última consulta em 6 de Outubro de 2011.

[22] Idem.

[23] WILLIAMS, John. O urânio e a guerra - Os efeitos das armas com urânio empobrecido usadas no Iraque. Disponível em https://resistir.info/iraque/uranium_p.html Último acesso em 6 de Outubro de 2011.

[24] KEEGAN, John. Op. cit., p. 492. Grifos meus.

 

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Instinto de conservação; Meios de conservação

16/08/2011 12:05

“Instinto de conservação; Meios de conservação”, O Livro dos Espíritos, 3ª parte, cap. V (Da Lei de Conservação), perguntas 702 a 710. Rio de Janeiro, 2 de Agosto de 2011.

 

            Quem de nós, quando criança, nunca reparou, curiosamente, uma tartaruga fazendo movimentos defensivos, recolhendo-se para seu casco? Não sei se a maioria das crianças está preocupada com o significado da atitude do réptil, mas esta, certamente tem muito haver com o nosso tema. Trata-se de um animal de caminhar pesado, lento mesmo, que durante um bom período do ano hiberna. Seu resistente casco, sem sombra de dúvidas, é providencial para que este animal tenha uma longa vida. Outros animais, como a lebre, por exemplo, preparam fuga ao menor barulho que escutam. O tubarão, por outro lado, consegue perceber uma potencial presa a quilômetros de distância, uma vez que consegue perceber sangue na água. Segundo o biólogo e zootecnista Daniel Pereira Rocha, "Isso ocorre devido ao formato e à fisiologia de seu nariz. Conforme o tubarão nada, a água flui através de duas narinas frontais. A água entra pela passagem nasal e passa por dobras de pele cobertas por células sensoriais” [1]. Ainda segundo ele, "Um grande tubarão-branco seria capaz de detectar uma única gota de sangue em uma piscina olímpica.” [2]Os animais, assim, conforme nos fala Sérgio Biagi Gregório, procuram

comer e esforçar-se para não ser comido pelos outros. Essa é a razão pela qual os órgãos sensoriais, que investigam se existe alimento em volta ou que, ao pressentir perigo, ordena ao corpo que se proteja ou fuja, encontram-se perto do orifício de introdução dos alimentos. [3]

            Em “O Livro dos Espíritos”, Allan Kardec indaga aos Espíritos Codificadores na questão 702 se o instinto de conservação é lei da Natureza, ao que eles respondem afirmativamente, assinalando que “todos os seres vivos o possuem, qualquer que seja o grau de sua inteligência. Nuns, é puramente maquinal, raciocinado em outros.” [4] Já devem ter visto aquelas situações de emergência, em ambientes fechados onde, diante de alguma ocorrência que ponha as vidas em risco, as pessoas colocam-se em desespero, muitas vezes aumentando os perigos dos demais com suas atitudes. Muitos, em fuga, não titubeiam em pisotear os que eventualmente caíram no chão... Nos seres humanos, a par de situações como estas, o instinto de conservação é operado de maneira racional, uma vez que ele tem a capacidade de escolher a maneira mais adequada de comportar-se em determinadas situações. Pode “dominar-se, recordar, prever e planejar os atos segundo as experiências acumuladas.” [5] Essa questão das experiências acumuladas me faz lembrar que o medo contagia. Vimos, em algum noticiário, informações sobre a queda de um avião. Temos que viajar de avião no dia seguinte. “Será que o meu avião será o próximo?” Muitos devem se fazer essa pergunta. Certa vez, voltando da universidade, uma colega narrava que havia sido assaltada, em pouco tempo, diversas vezes (acho que três). Pegou o ônibus comigo. Confesso que sua narrativa tão viva a respeito de sua trágica experiência me colocou profundamente preocupado dentro do ônibus, no momento que ele atravessava a Ponte Rio-Niterói, vindo para o Rio... Olhava para algumas pessoas procurando identificar potenciais criminosos. E que angústia senti!

            Na pergunta 703 Kardec deseja saber com que objetivo outorgou Deus a todos os seres vivos o instinto de conservação. Segundo os Espíritos Superiores isso se dá

Porque todos têm que concorrer para cumprimento dos desígnios da Providência. Por isso foi que Deus lhes deu a necessidade de viver. Acresce que a vida é necessária ao aperfeiçoamento dos seres. Eles o sentem instintivamente, sem disso se aperceberem. [6]

            Tudo que existe tem uma função, desempenha um papel na obra da criação. Por isso os animais (e os homens) lutam pela sobrevivência. As vezes penso que seja difícil imaginar esse papel desempenhado pelos demais seres vivos na natureza. Grosso modo, poderíamos dizer que, esforçando-se para sobreviver - e para isso devorando-se uns aos outros -, os animais mantém o equilíbrio das espécies. Quando, nas regiões do interior, ocorrem caçadas de pássaros, por exemplo, pode haver a ocorrência de gafanhotos em quantidade acima do comum, prejudicando plantações. Os pássaros são predadores naturais destes insetos. Se os homens preservarem os predadores naturais dos gafanhotos (além dos pássaros, aranhas e morcegos), não sofrerão com a superabundância desta espécie e a produção de alimentos de uma dada região não se prejudica.

            Apenas vivendo o bicho da seda nos ajuda, oferecendo-nos a seda.

O bicho-da-seda se alimenta das folhas da amoreira. É nesta fase que a larva começa a tecer seu casulo, feito com fios de muitos metros de comprimento. O fio de seda é secretado por uma glândula, chamada de glândula sericígena, localizada na parte inferior da boca da lagarta. A larva fia a seda ao redor do seu corpo fazendo movimentos geométricos em forma de número 8 até que todo o líquido que forma o fio termine, isto ocorre em torno de três dias, até lá, são secretados aproximadamente 1.000 metros dessa substância. Depois disso, num período de três semanas, nasce uma borboleta branca.

Para se obter fios de seda é preciso mergulhar os casulos em água quente para amolecê-los e retirar deles uma espécie de goma que os faz ficar presos uns aos outros. Uma vez encontradas as pontas dos fios, os casulos são desenrolados calmamente e, depois disso, estes fios são enrolados numa roda formando uma meada. Este processo, em suma, consiste em desfazer todo o trabalho que a lagarta teve para formar o casulo. [7]

            Outro ser vivo que muitos não imaginam a importância são os plânctons, organismos uni ou pluricelulares que flutuam nos oceanos e, também, nas superfícies de água doce. São a base da cadeia alimentar do ecossistema aquático. O fitoplâncton tem importância fundamental para o planeta em que vivemos, pois retira da atmosfera gás carbônico e devolve oxigênio, sendo mesmo a maior fonte deste gás vital para todos nós. [8] Assim, os pássaros, o bicho da seda e os plânctons, ao viverem, são instrumentos da Providência Divina. Além disso, conforme já estudamos [9], evoluem, por sua vez, porque nada na criação de Deus está destinado a estagnação.

            Já abordando os meios de conservação, Kardec indaga:

704. Tendo dado ao homem a necessidade de viver, Deus lhe facultou, em todos os tempos, os meios de o conseguir?

“Certo, e se ele os não encontra, é que não os compreende. Não fora possível que Deus criasse para o homem a necessidade de viver, sem lhe dar os meios de consegui-lo. Essa a razão porque faz que a Terra produza de modo a proporcionar o necessário aos que a habitam, visto que só o necessário é útil. O supérfluo nunca o é.” [10]

            Os homens, no passado (e como nos dias de hoje), conseguiam sustento na Natureza através das práticas coletoras de frutos e da caça, sendo que em uns lugares uma atividade era mais preponderante que em outras, de acordo com a “oferta” disponível. Na Revista Espírita de Fevereiro de 1864, em uma comunicação do Espírito Percheron sobre a necessidade da encarnação, temos que

As necessidades que vosso corpo vos fazem experimentar estimulam vosso Espírito e o forçam a procurar os meios de provê-las; desse trabalho forçado nasce o desenvolvimento do pensamento; o Espírito constrangido a presidir os movimentos do corpo para dirigi-los em vista de sua conservação, é conduzido ao trabalho material, e ao trabalho intelectual, que se necessitam um ao outro e um para o outro, uma vez que a realização das concepções no Espírito exige o trabalho do corpo, e que este não pode fazer senão sob a direção e o impulso do Espírito. O Espírito tendo assim tomado o hábito de trabalhar, e sendo constrangido ao trabalho pelas necessidades do corpo, o trabalho, ao seu turno, se torna uma necessidade para ele (...) [11]

            O homem, assim, pelo suor do seu rosto (para usar da expressão do Gênese Bíblico) trabalha para sustentar-se, o que lhe desenvolve o pensamento. As conquistas humanas na área da tecnologia, nos nossos dias, estão sendo o clímax destas realizações. Facilitam-nos a vida. Mas nos geram necessidades novas. No entanto, em matéria de sustento material, nosso planeta nos oferece o necessário, o que nos é útil, e não o supérfluo que, quando acumulado por alguns, geram necessidades em outros seres humanos.

            Kardec indaga, então, aos Espíritos da Codificação, na pergunta 705,  por que nem sempre a terra produz bastante para fornecer ao homem o necessário, ao que eles respondem que

(...) A terra produziria sempre o necessário, se com o necessário soubesse o homem contentar-se. Se o que ela produz não lhe basta a todas as necessidades, é que ele emprega no supérfluo o que poderia ser aplicado no necessário. Olha o árabe no deserto. Acha sempre de que viver, porque não cria para si necessidades factícias.  (...) Em verdade vos digo, imprevidente não é a Natureza, é o homem, que não sabe regrar o seu viver. [12]

                A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), em seu site, tem um artigo interessante chamado “Reduzir o desperdício para alimentar o mundo”. Segundo o informe “Perdas e desperdício de alimentos no mundo”, cerca de um terço dos alimentos que se produzem a cada ano, no mundo, para consumo humano, algo em torno de 1 bilhão e 300 milhões de toneladas, são desperdiçados ou perdidos. As perdas de alimentos, que podem dar-se da fase de produção, coleta e processamento, são mais elevadas em países em desenvolvimento, por conta da precariedade da infraestrutura. O desperdício de alimentos é maior nos países industrializados. Ainda segundo o informe, o índice de desperdício per capita, entre os consumidores, é de 95 - 115 Kg anuais na Europa e América do Norte, ao passo que na África Subsaariana e na Ásia Meridional e Sudeste asiático é de 6 - 11 Kg por pessoa. Os consumidores dos países ricos são estimulados a comprar mais alimentos do que de fato necessitam. As promoções do tipo “Compre três e pague dois” são um exemplo. Além disso, temos as comidas preparadas em excesso por restaurantes. Já devem ter visto serviços de Buffet onde, por preço fixo, os consumidores são estimulados a encher o prato, sem muitas vezes comerem tudo... [13]

            Para muitas pessoas, nos tempos em que vivemos, está faltando o necessário, ao passo que uma minoria detém em excesso riquezas que seriam fundamentais para a sobrevivência de muitos. Quando desencarna um famoso mundial, alguém dos holofotes, parcela significativa da sociedade ocidental sente comiseração, lastima, se entristece... Todos os dias morrem crianças anonimamente na África por desnutrição. Quantas notícias vocês assistem a respeito disso?

            Na África, além das imagens das crianças desnutridas com o ventre inchado, temos as das suas mães que, para amenizar a fome, atam cordas em volta de suas barrigas. Não me refiro ao “espartilho” ocidental, que deixa corpos em forma de violão. São cordas que atam os estômagos para, de alguma maneira, aliviar a fome que constantemente estão sentindo. Mas essa prática pode ser fatal, uma vez que estas mulheres, ao desatarem bruscamente dessas cordas, quando conseguem alimentos, morrem. Nas situações de conflito, onde estas pessoas esquálidas procuram acampamentos fora das áreas conflagradas, são encontradas crianças sozinhas pelos caminhos, cujos pais morreram de fome antes de atingirem um local que lhes ofereça segurança. [14] Segundo o UNICEF, 780 mil crianças podem morrer de fome na Somália se não receberem ajuda imediata. O número total de crianças em situação de desnutrição severa na Somália, Quênia e Etiópia é de 2,3 milhões, neste momento (os dados são do dia 22/07/2011). [15]

            Enquanto isso, o atual presidente dos Estados Unidos, ao defender a retirada das tropas de guerra estadunidenses do “perigoso” Afeganistão, alegando questões de custo como uma das razões para tanto, ele não mentiu. Afinal, referiu-se a uma quantia de 1 trilhão de dólares gastos pelo seu país nos massacres que promove pelo mundo. “A conta total deve ficar entre 3,7 e 4,4 trilhões de dólares, de acordo com o projeto de pesquisa intitulado "Custos da Guerra", feito pelo Instituto Watson de Estudos Internacionais, da Universidade Brown (...)” [16] Não encontrei dados mais recentes, mas em 2006, a Reuters divulgou que

Dois por cento dos adultos do planeta detêm mais de metade da riqueza mundial, incluindo propriedades e ativos financeiros, revelou um estudo realizado por um instituto de desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU) (...)

A riqueza está fortemente concentrada na América do Norte, na Europa e nos países de alta renda da Ásia e do Pacífico. Os moradores desses países detêm juntos quase 90 por cento do total da riqueza do planeta'', disse a pesquisa. (...)

Nós calculamos que os 2 por cento dos adultos mais ricos do mundo possuem mais da metade da riqueza global enquanto os 50 por cento mais pobres, 1 por cento'', disse Anthony Shorrocks, diretor do instituto. [17]

            Por fim, a soma do PIB dos 15 países mais ricos do mundo (o Brasil está em 7º lugar), de 2011, é de 47 trilhões, 772 milhões de dólares (47.772.000.000.000). Nove zeros!

            Será que faltam recursos no mundo, ou eles são mal empregados? Ou eles estão concentrados nas mãos de poucos indivíduos? Quando faço esta pergunta estou pensando na resposta que os Espíritos deram a questão 706 de O Livro dos Espíritos, quando as Inteligências diretoras do Espiritismo disseram que “por bens da Terra se deve, pois, entender tudo de que o homem pode gozar neste mundo.” [18] Estou seguro que os Espíritos ao dizerem “o homem” referem-se a toda humanidade, e não apenas aos ricos.  

708. Não há situações em as quais os meios de subsistência de maneira alguma dependem da vontade do homem, sendo-lhes a privação do de que mais imperiosamente necessita uma conseqüência da força mesma das coisas?

É isso uma prova, muitas vezes cruel, que lhe compete sofrer e à qual sabia ele de antemão que viria a estar exposto. Seu mérito consiste em submeter-se à vontade de Deus, desde que sua inteligência nenhum meio lhe faculte de sair da dificuldade. Se a morte vier colhê-lo, cumpre-lhe recebê-la sem murmurar, ponderando que a hora da verdadeira libertação soou e que o desespero no derradeiro momento pode ocasionar-lhe a perda do fruto de toda a sua resignação. [19]

            Quando falecem os meios de manter-se, quando o sujeito perece de fome, o que, pelo menos para nós já é difícil observar de perto, mas realidade presente na África, aquele que está passando por isso encara duríssima prova. Eu nunca fiquei um dia inteiro sem comer. Quando fico por muito tempo sem alimentar-me começa a doer-me a cabeça. Por quantos dias ficarão sem comer aquelas crianças africanas, bem como suas mães? Na resposta dos Espíritos podemos apreender, também, a importância da resignação, que não quer dizer conformismo. Resignação é a aceitação daquilo que não pode ser mudado no momento. A situação onde seres humanos passem fome pode ser mudada. A fome deve ser combatida. O mundo, como todos nós, estamos em processo dinâmico de transformações. O mundo está sendo. Nós estamos sendo. Sujeitos da História que somos, temos responsabilidade pelo que acontece no mundo, a despeito das distâncias geográficas. Se não tivéssemos responsabilidade, não estaríamos neste planeta. Alguém se lembrou de direcionar o pensamento para os africanos que estão morrendo de fome neste momento? Alguém ficou incomodado que alguns fabricantes do Ipad, da Apple, submeta seus empregados a estressantes jornadas de trabalho a ponto de muitos destes chegarem a cometer suicídio? [20] Será que é moralmente aceitável comprar os baratos produtos chineses, sabendo da ocorrência de trabalho escravo em suas instalações industriais? [21] Será mesmo que não temos nada com isso? Ou somos, de certa forma, financiadores disso?

            Os Espíritos, na resposta da questão 709, informam-nos ainda que, numa situação extrema, onde vários indivíduos estão passando fome, é errado sacrificar algum para servir de alimento para os demais, havendo aí homicídio e crime de lesa-natureza. A postura correta daqueles submetidos a esta situação extremada seria, ainda uma vez, sofrer a prova com coragem e resignação, que lhe granjearia merecimento.

            E por fim,

710. Nos mundos de mais apurada organização, têm os seres vivos necessidade de alimentar-se?

Têm, mas seus alimentos estão em relação com a sua natureza. Tais alimentos não seriam bastante substanciosos para os vossos estômagos grosseiros; assim como os deles não poderiam digerir os vossos alimentos. [22]

            À medida que evoluam, seus corpos acompanharão o desenvolvimento atingido e não serão mais necessários alimentos pesados, como os que estamos acostumados a receber. Imagino, então, que as dietas são aí desnecessárias, uma vez que estes Espíritos já aprenderam a regrar-se. Elegeram o necessário, não o supérfluo. Num sistema onde todos tenham o necessário, os estômagos estarão satisfeitos, porque o coração será mais calmo e repleto de amor.



[1] ROCHA, Daniel Pereira. Tubarões sentem cheiro de sangue a distância? Disponível em: https://noticias.terra.com.br/educacao/vocesabia/noticias/0,,OI3451610-EI8399,00-Tubaroes+sentem+cheiro+de+sangue+a+distancia.html Último acesso em 25 de Julho de 2011.

[2] Idem.

[3] GREGÓRIO, Sérgio Biagi. Lei de Conservação. Disponível em: https://www.sergiobiagigregorio.com.br/palestra/lei-de-conservacao.htm Último acesso em 25 de Julho de 2011. Grifos meus.

[4] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 1995, p. 337.

[5] GREGÓRIO, Sérgio Biagi. Lei de Conservação. Disponível em: https://www.sergiobiagigregorio.com.br/palestra/lei-de-conservacao.htm Último acesso em 25 de Julho de 2011.

[6] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, Op. Cit., p.337. Grifos meus.

[7] PACIEVITCH, Thais. O Bicho da Seda. Disponível em: https://www.infoescola.com/insetos/bicho-da-seda/ Último acesso em 26 de Julho de 2011.

[8] PACIEVITCH, Thais. Plâncton. Disponível em: https://www.infoescola.com/biologia/plancton/ Último acesso em 26 de Julho de 2011.

[9] OLIVEIRA, Marco Aurélio Gomes. Os animais e o homem. Disponível em: https://transformandomundo.blogspot.com/2011/02/os-animais-e-o-homem.html Último acesso em 26 de Julho de 2011. Palestra apresentada dia 8 de Fevereiro de 2011 no Grupo de Caridade Deus, Luz e Amor.

[10] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Op. cit., p. 337 e 338. Grifos meus.

[11] KARDEC, Allan. Dissertações espíritas - Necessidade da Encarnação. Revista Espírita. Paris, fevereiro de 1864, nº2, p. 35. Grifos meus.

[12] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Op. cit., p.338. Grifos meus.

[13] Reducir el desperdicio para alimentar al mundo. Disponível em: https://www.fao.org.br/vernoticias.asp?id_noticia=1006 Último acesso em 26 de Julho de 2011.

[14] GIACOSA, Guillermo. La faja gástrica africana. Disponível em: https://peru21.pe/impresa/noticia/faja-gastrica-africana2/2011-07-22/309208 e https://peru21.pe/impresa/noticia/banda-gastrica-africana1/2011-07-21/309134 Último acesso em 26 de Julho de 2011.

[15] NASSIF, Luiz. A tragédia social da Somália. Disponível em: https://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-tragedia-social-da-somalia?utm_source=twitterfeed&utm_medium=twitter Último acesso em 26 de Julho de 2011.

[16] TROTTA, Daniel. Custo de guerras dos EUA deve superar US$: 3,7 trilhões, diz estudo. Disponível em: https://br.reuters.com/article/topNews/idBRSPE75S04W20110629 Último acesso em 26 de Julho de 2011.

[17] REUTERS / BRASIL ON LINE. ONU: apenas 2% detêm mais da metade da riqueza mundial. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/mat/2006/12/05/286900968.asp Último acesso em 26 de Julho de 2011. Grifos meus.

[18] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Op. Cit., p.338.

[19] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Op. Cit., p.340. Grifos do autor.

[20] Fornecedora do iPad na China registra a 10ª morte em um ano. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/tec/740452-fornecedora-do-ipad-na-china-registra-10-morte-em-um-ano.shtml Último acesso em 26 de Julho de 2011.

[21] NASSIF, Luis. O trabalho escravo na China. Disponível em: https://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/o-trabalho-escravo-na-china Último acesso em 26 de Julho de 2011.

[22] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Op. cit., p. 340.

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Deixar aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos

10/07/2011 21:32

Deixar aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos - O Evangelho S. Esp., cap. XXIII (Estranha moral), itens 7 e 8. Rio de Janeiro, 14 de Junho de 2011.

 

            Deixar aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos é um tema a princípio curioso de um capítulo igualmente de nome curioso em O Evangelho Segundo o Espiritismo. Curioso para aqueles que lhe não penetraram a essência. A primeira vista, aos olhos das pessoas não familiarizadas com os estudos espíritas, poderia parecer algum tipo de pregação cruel que não valorizasse, ou mesmo desprezasse os despojos carnais. “Nossa, então os espíritas não ligam importância ao corpo?” Poderiam, assim, questionarem-se alguns, preocupados, antes de mais nada, em desqualificar o Espiritismo e os espíritas em nome de interesses de religião ou, até mesmo, contra a noção de religião, no caso daqueles que não acreditam em Deus e na sobrevivência da alma ao fenômeno biológico chamado morte. O desenvolvimento do tema, no entanto, nos fará ver que não se trata de qualquer anormalidade, desde que tenhamos o referencial de nossas vidas na idéia de Deus e da imortalidade da alma.

            Para iniciarmos a análise, citamos a passagem evangélica que inspirou o tema:

Disse a outro: Segue-me; e o outro respondeu: Senhor, consente que, primeiro, eu vá enterrar meu pai. - Jesus retrucou: Deixa aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos; quanto a ti, vai anunciar o reino de Deus. (S. Lucas, 9:59-60)[1]

            À primeira vista, parece-nos uma atitude cruel da parte de Jesus solicitar a alguém que o seguisse ainda que tivesse que deixar para trás o sepultamento do corpo de seu pai. A tradição do Judaísmo possui um ritual religioso de preparação do corpo para o sepultamento, a Taharah[2], onde é realizada a limpeza física dele, além de envolvê-lo em uma mortalha simples, da cor branca e composta por linho comum. Além disso, são realizadas preces por aquele que morreu, pendido perdão a Deus pelos pecados que ele possa ter cometido e que ele possa alcançar a paz eterna. Estas informações foram obtidas mediante pesquisa breve na internet, o que pode nos levantar a seguinte questão: “Se esse ritual é preconizado nos dias de hoje, terá sido sempre assim entre os judeus?” Não sou especialista em História do Judaísmo ou dos Judeus, aliás, nem aprecio muito essa categoria de “especialista”, que tenta “cavar” um lugar de autoridade para aquele que é chamado a opinar, quase que o colocando como “dono da verdade”. Entretanto, a tomar pelo zelo com que os Judeus procuram manter suas tradições, é possível que tenham sido, à época de Jesus, esses os rituais fúnebres ou, pelo menos, minimamente semelhantes. Estaria, então, Jesus, insurgindo-se contra o piedoso hábito de dar tratamento digno aos mortos?

            Nos dias de hoje, muita gente almeja ser “celebridade”! Ser famoso (a), ter seus momentos de fama, quando não uma vida inteira. Perseguições de fotógrafos em todos os locais que freqüenta. Idolatria de sua personalidade por jovens e adultos. Arrastar multidões por onde passa. O projeto de vida de alguns, nos dias de hoje, é ser a celebridade do pagode, do futebol, da TV. A mídia, aliás, estimula esse desejo nas pessoas, na medida em que alimenta, em que tenta “pintar” um quadro de satisfação pessoal para essas celebridades. Esse movimento midiático vende produtos, porque diz de um modo de viver que traria felicidade pessoal. Aí se deseja o brinco da atriz da novela das oito que passa as nove, por causa da classificação etária, que não a recomenda para menores de 10 ou 12 anos. Deseja-se, também, ter a popularidade do galã principal com as mulheres. São copiados estilos de vida, maneiras de se comportar e vestir. Lembram-se dos famosos “bordões”, que viram verdadeira febre e são repetidos à exaustão? Graças a Deus não lembro, agora, de nenhum. Essa introdução toda para questionar: Como será a desencarnação dessas celebridades? Como serão os primeiros momentos no mundo espiritual daqueles que são idolatrados e que, por uma questão ética, nem sempre mereceriam semelhante idolatria?

            Pela psicografia de Francisco Cândido Xavier, temos a narrativa dos momentos que se seguiram à desencarnação de Irmão Jacob, pseudônimo de Frederico Figner, ex-diretor da Federação Espírita Brasileira, atuante no Movimento Espírita na primeira metade do século XX.

Grande movimentação de gente se fizera em volta do lar onde meus olhos de carne se haviam cerrado para sempre.

Natural atração me impulsionava a entrar, precipitadamente. O campo doméstico reclamava-me o espírito qual poderoso imã. Entretanto, forças desconhecidas compeliam-me a retroceder. (...)

As projeções mentais da maioria de nossos amigos, aqui congregados, formam energias contraditórias, entre si. Alguns discutem e muitos pensam de maneira inadequada ao respeito que devemos a um companheiro em transe. (...) Você ainda se acha na condição do pássaro mal saído do ninho, incapaz de voar livremente.  (...)

Recomendou Bezerra ao Irmão Andrade e Marta me assistissem, enquanto cortaria o laço que, de certa forma, ainda me retinha às vísceras cadavéricas. (...)

Retornara a dispnéia. Se o leito estivesse à minha disposição, nele buscaria, sem delonga, refúgio reconfortante.

Marta ajudou-me, esclarecendo que a hora se caracterizava por muita ansiedade no coração dos entes que me consagravam sincera estima na Terra, que inúmeros pensamentos de angústia convergiam sobre mim e, por isso, eu devia resistir, garantindo tranqüilidade própria. (...)

Amargurado e aflito, qual me achava, ponderei os sofrimentos dos que abandonam a experiência física sem qualquer preparação. Se eu, que consagrara longos anos aos estudos espiritualistas, encontrava óbices tão grandes, que não ocorreria aos homens comuns, que não cogitam dos problemas relativos à alma? Ali, à frente de meus próprios amigos, sentia-me num torvelinho de contraditórias sensações. [3]

            Procuro imaginar, por isso, a desencarnação das celebridades do mundo, pessoas que assumiram destaque naquilo que faziam, enquanto encarnadas e que, por causa disso, angariaram grande número de ardorosos fãs e seguidores. Aquilo que o Espírito Irmão Jacob narrou em sua obra, deve ser potencializado enormemente. Mas esse é apenas um dos problemas possíveis.

            A fala de Jesus pode, também, aplicar-se a questão dos convencionalismos sociais. As ocasiões das vidas humanas passam a ser ritualizadas, protocolizadas e, por isso, perdem em sentimento e em naturalidade, que nos deveria caracterizar a todos. Na morte, por exemplo, não é difícil lembrarmo-nos dos preços dos sepultamentos dos corpos, principalmente se já se teve a experiência recente de se pagar a um. No segundo semestre de 2009, sepultar um corpo com simplicidade, na cidade do Rio de Janeiro, equivalia gastar-se algo em torno de R$: 1.500,00 (mil e quinhentos reais). Destes, apenas um caixão custava R$: 600,00 (seiscentos reais). Existem caixões que são verdadeiros espetáculos de luxo que, em última análise, sabemos desnecessário para aquela situação. Acolchoados, reluzentes... Para quê? O que está dentro apodrecerá! Mas, tenho a impressão, que se deseja ostentar. É demonstrar, com o caixão mais caro, com as flores em excesso, com a sofisticação, que se dispõe de dinheiro para ostentar, ainda que as justificativas, daqueles que financiam, não seja essa, em absoluto. Recordo-me do Espírito André Luiz que, num livro psicografado por Waldo Vieira, “Conduta Espírita”, nos diz que devemos

Dispensar aparatos, pompas e encenações nos funerais de pessoas pelas quais se responsabilize, abolir o uso de velas e coroas, crepes e imagens, e conferir ao cadáver o tempo preciso de preparação para o enterramento ou a cremação.

Nem todo Espírito se desliga prontamente do corpo. (...)

Transformar o culto da saudade, comumente expresso no oferecimento de coroas e flores, em donativos às instituições assistenciais, sem espírito sectário, fazendo o mesmo nas comemorações e homenagens a desencarnados, sejam elas pessoais ou gerais.

A saudade somente constrói quando associada ao labor do bem. [4]

            Nos comentários de Kardec temos uma informação que, para os espíritas, é ponto pacífico, que todos concordam sem dificuldades, mas cuja vivência pessoal é problemática. “A vida espiritual é, com efeito, a verdadeira vida, é a vida normal do Espírito, sendo-lhe transitória e passageira a existência terrestre, espécie de morte, se comparada ao esplendor e à atividade da outra.” [5] Parece uma questão de fácil entendimento. Pode até ser. Racionalmente admitirmos, tudo bem. Mas na vida prática, na vida de relação, no nosso cotidiano, não nos comportamos como se fôssemos Espíritos portadores de um corpo. Vivemos, lamentavelmente, operando na lógica contrária. Comportamos-nos como se fôramos apenas ter dispor dessa única oportunidade. Não sei se já tiveram oportunidades de reparar, mas os templos religiosos, nos dias de hoje, quando cheios, a maioria das pessoas são de idosos. Claro que, entre estes, contam-se pessoas que viveram, durante largo tempo, na religião. Mas... Quantos seriam aqueles que, somente nos últimos anos de existência, recorrem à religião para confortarem suas vidas? Notamos que muitas Igrejas protestantes, e até a católica, possuem grande número de jovens. No entanto, também através de observações e, também, por experiência pessoal (porque já fui católico), muitos jovens que ali estão o fazem por uma questão... Social. Reunião social. Acho, aliás, este um perigo para todos os religiosos. Começar a transformar o local de encontro religioso em “point”.  Ir à Igreja porque os amigos vão. Fazer catecismo ou crisma porque os amigos fazem ou fizeram. Conhecemos jovens que se pautaram, neste aspecto, pela conduta dos outros. Essa postura, de transformar o espaço de orações, seja qual seja, em “point”, diz muito de nossa pouca identificação com a vida espiritual, com um comportamento verdadeiramente cristão, independente de denominação religiosa.

            A vida material é um relâmpago, de tão rápido que passa. À medida que envelhecemos, parece-nos que o tempo escorre ainda mais depressa. Nas oportunidades que tive de conversar com anciãos, no Hospital onde trabalho, sempre que eles informavam a idade, eu lhes perguntava: “Passou rápido?” Não lembro um que tenha dito que não. E sempre o fazem com melancolia. Se levamos em conta, os que não sofremos de distúrbios do sono, que levamos, segundo os vendedores de colchões, um terço de nossas vidas dormindo, o tempo se encurta ainda mais. Penso que quando atinjamos o entendimento da nossa realidade de Espíritos eternos em transe provisório na carne, aproveitaremos mais o tempo. Assim Chico Xavier referia-se ao tempo, sobre os seus 56 anos de mediunidade, em 1984.

(...) por muito que se dê ao trabalho no bem, a gente nunca dá o que devia e eu não dei tanto tempo assim...

O tempo disponível, os Espíritos Amigos ocuparam com a formação dos livros que conhecemos. Desde o ano de 1931, houve interrupção apenas nos anos de 33 a 34; todos os outros anos o trabalho dos Espíritos apareceu nos livros. Se eu não tivesse dado - porque eu não dei tempo nenhum - algum tempo aos Benfeitores Espirituais, o que que eu teria feito com o tempo?!... Talvez estivesse num Sanatório, num cárcere. (...) O tempo me livrou de muitas dificuldades na minha personalidade. Eles podaram em mim muitas dificuldades para que eu pudesse trabalhar com eles... [6]

            Sei que dificilmente teremos o aproveitamento de tempo de Chico Xavier que, numa outra ocasião, comparou seus anos de serviços a horas... A postura dele, no entanto, é a de quem compreendeu o significado do tempo aqui. Oportunidade de serviço, de crescimento moral e intelectual. Fora que essa compreensão de realidade redimensiona nossos infortúnios. Allan Kardec, ainda em O Evangelho Segundo o Espiritismo, no capítulo “Meu reino não é deste mundo” nos diz que

A idéia clara e precisa que se faça da vida futura proporciona inabalável fé no porvir, fé que acarreta enormes conseqüências sobre a moralização dos homens, porque muda completamente o ponto de vista sob o qual encaram eles a vida terrena. Para quem se coloca, pelo pensamento, na vida espiritual, que é indefinida, a vida corpórea se torna simples passagem, breve estada num país ingrato. [7]

            A vida presente é comparada, por Kardec, a uma espécie de “morte”, comparando-se com o esplendor da outra vida. Ou como a estada num país que nos desagrade. Chama a atenção, portanto, para a brevidade da experiência carnal em face do que nos espera enquanto Espíritos imortais, em trânsito pela evolução. “O corpo não passa de simples vestimenta grosseira que temporariamente cobre o Espírito, verdadeiro grilhão que o prende à gleba terrena, do qual se sente ele feliz em libertar-se.” [8] Essa certeza faz com que soframos menos os golpes da desencarnação de entes queridos, além de preparar-nos para a nossa, uma vez que começamos a eliminar “laços” que nos prendam à vida física e, no momento de nossa morte biológica, nossa desencarnação tende a ser mais rápida. O Espírito Delfina de Girardin, falando da desgraça real, diz que estas seriam as distrações que calam-nos a consciência, constituindo-se no ópio do esquecimento de nossas responsabilidades perante nosso aprendizado moral. Esclarecidos pelo Espiritismo,

Agireis então como bravos soldados que, longe de fugirem ao perigo, preferem as lutas dos combates arriscados à paz que lhes não pode dar glórias, nem promoção! Que importa ao soldado perder na refrega armas, bagagens e uniforme, desde que saia vencedor e com glória? [9]

            Kardec fala-nos que o respeito que votamos aos mortos não é inspirado pelo corpo, mas sim pela lembrança que o Espírito ausente nos infunde. Não sei se já notaram, mas parece que, intimamente, até as pessoas não reconhecidamente espíritas, admitem, inconscientemente, a existência do Espírito. Dizem “o corpo de fulano de tal será sepultado hoje...” Dando a entender que existe alguém ausente, que não está mais ali, animando aquele corpo. Fala-se da mesma maneira que se fala de um automóvel. “O carro do Paulo”. Ninguém confunde o carro com o Paulo, ao se referir a um dos dois. O dizer “o corpo de...” para mim é sintomático de uma crença não declarada, ou até inconsciente, na sobrevivência da alma. Faz parte de nosso DNA divino!

            Através da mediunidade de Chico Xavier, Emmanuel faz alguns comentários a respeito dessa passagem evangélica. O livro em que comenta isso é um velho conhecido nosso de início de reuniões públicas. No “Fonte Viva”, numa página intitulada “Acorda e ajuda”, o autor espiritual chama-nos atenção para o fato de que Jesus não nos teria recomendado deixar aos cadáveres a tarefa de sepultar os cadáveres, apontando diferenças. Para ele,

O cadáver é carne sem vida, enquanto que um morto é alguém que se ausenta da vida.

Há muita gente que perambula nas sombras da morte sem morrer.

Trânsfugas da evolução, cerram-se entre as paredes da própria mente, cristalizados no egoísmo ou na vaidade, negando-se a partilhar a experiência comum. [10]

                Seriam, dessa forma, indivíduos sepultados na riqueza, no vício, no desalento e na ilusão. E estas são, verdadeiramente, sepulturas de encarnados, que os mantém aí enquanto estes deveriam utilizar-se da potencialidade de filhos de Deus em evolução para desenvolverem-se. Em última análise, são indivíduos viciados na riqueza, no desalento, na ilusão e no próprio vício, seja de que natureza for. O sujeito não se considera capaz de romper o vínculo com o vício, que lhe traz, ao que parece, uma espécie de “segurança psicológica”. Faz-nos lembrar da história, contida no Antigo Testamento, da mulher de Lot. Este, que era justo, fora advertido que deveria sair com sua família da famosa Sodoma. Lot acolhera dois estrangeiros, o que naquela região seria proibido, saindo em defesa deles. Na verdade, estes seriam anjos que ali estavam para destruir a cidade. Antes, recomendaram-lhe que daí se retirasse, com sua mulher e suas duas filhas, sem que pudessem olhar para trás. A poetiza russa   Anna Akhmátova conta-nos assim essa passagem

E o homem justo seguiu o enviado de Deus,

alto e brilhante, pelas negras montanhas.

Mas a angústia falava bem alto à sua mulher:

"Ainda não é tarde demais; ainda dá tempo de olhar

as rubras torres da tua Sodoma natal,

a praça onde cantavas, o pátio onde fiavas,

as janelas vazias da casa elevada

onde destes filhos ao homem amado".

Ela olhou e - paralisada pela dor mortal -,

seus olhos nada mais puderam ver.

E converte-se o corpo em transparente sal

e os ágeis pés no chão enraizaram-se.

Quem há de chorar por essa mulher?

Não é insignificante demais para que a lamentem?

E, no entanto, meu coração nunca esquecerá

quem deu a própria vida por um único olhar. [11]

E o passado, e o apego transformaram a mulher de Lot numa estátua de sal. As propriedades do sal já conhecemos. Serve para conservar, como para temperar. O vício solicita-nos que o conservemos. E cultivamos nossas algemas, que nos prendem ao círculo de reencarnações inferiores. No filme Nosso Lar, há uma frase significativa: “Quantos anos são necessários para recuperar um instante?” Quantas oportunidades perdemos, porque congelados nos nossos pontos de vista, nas nossas vaidades, nas nossas visões de mundo, das quais não abrimos mão para olhar a realidade que nos cerca? É claro que na atividade que desempenhamos na Casa Espírita estamos cheios do nosso passado. Somos a resultante de nossas ações, de um passado recente e de um passado distante. Passado que é acionado quando vivemos, porque é representativo das nossas vivências pessoais, ainda que, quase sempre, pouco felizes. Damos o que temos. Se temos séculos de comprometimento com o erro, com o crime, com os deslizes morais em diferentes encarnações, é evidente que o somatório dessas experiências venham a tona no momento em que vivemos ocasiões de praticar, novamente, os erros do passado. O Divaldo Franco conta de um menino que acolheu em sua instituição que fabricava facas com qualquer pedaço de metal. Quando questionado porque disso, ele dizia sentir saudade do sangue quente escorrendo em suas mãos... As lembranças podem não nos vir dessa maneira, mas nos virão na forma de conduta a adotar diante de situações específicas, quase sempre delicadas. Reagimos, quando deveríamos agir. Ofendemos, quando devíamos esperar mais um pouco, para não falarmos irritadiços. É o nosso passado que vem à tona. Somos debutantes no bem, começamos há pouco. Mas, graças a Deus, não somos maus. Estamos sendo maus. O que está sendo está em mudança. Somos seres inacabados, criados simples e ignorantes, com as ferramentas do nosso progresso moral em nossas mãos.  

Emmanuel conclama-nos, então

Aprende a participar da luta coletiva.

Sai, cada dia, de ti mesmo, e busca sentir a dor do vizinho, a necessidade do próximo, as angústias de teu irmão e ajuda quanto possas.

Não te galvanizes na esfera do próprio “eu”.

Desperta e vive com todos, por todos e para todos, porque ninguém respira tão somente para si.

Em qualquer parte do Universo, somos usufrutuários do esforço e do sacrifício de milhões de existências.

Cedamos algo de nós mesmos, em favor dos outros, pelo muito que os outros fazem por nós. [12]

            Dar de nós. Integrarmo-nos no mundo. Estar no mundo é isso. É participar, interagir, transformar a realidade para melhor. Ser “um instrumento da paz” onde estivermos. É tão pouco o que se tem a fazer e, para nós, tão difícil! Pequenas ações. Pequenos gestos. A missão do milímetro, porque a missão quilométrica é do Francisco de Assis, do Gandhi, de Paulo de Tarso e de outros.

            A introdução do livro “Cartas e Crônicas”, de Francisco Cândido Xavier, pelo Espírito Irmão X, temos

Num belo apólogo conta Rabindranath Tagore que um lavrador, a caminho de casa, com a colheita do dia, notou que, em sentido contrário, vinha suntuosa carruagem, revestida de estrelas. Contemplando-a, fascinado, viu-a estacar, junto dele, e, semi-estarrecido, reconheceu a presença do Senhor do Mundo, que saiu dela e estendeu-lhe a mão a pedir-lhe esmolas.

O quê? - refletiu, espantado - o Senhor da Vida a rogar-me auxílio, a mim, que nunca passei de mísero escravo, na aspereza do solo?

Conquanto excitado e mudo, mergulhou a mão no alforje de trigo que trazia e enfrentou ao Divino Pedinte apenas um grão da preciosa carga.

O Senhor agradeceu e partiu.

Quando, porém, o pobre homem do campo tornou a si do próprio assombro, observou que doce claridade vinha do alforje poeirento. O grânulo de trigo, do qual fizera sua dádiva, tornara à sacola, transformado em pepita de ouro luminescente.

Deslumbrado, gritou:

- Louco que fui! . Porque não dei tudo o que tenho ao Soberano da Vida? [13]

            Que possamos, então, dar o nosso melhor ao Senhor da Vida. Devemos dar o máximo que pudermos, se não conseguirmos dar tudo, na certeza de que nossa condição verdadeira é a de Espíritos Imortais numa experiência física. Deixemos, portanto, aos mortos, o cuidado de enterrar os seus mortos e tratemos dos nossos interesses imorredouros.

 



[1] Citado por KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro, FEB, p.404. Grifos meus.

[2] Disponível em: https://www.chabad.org.br/ciclodavida/Falecimento_luto/falecimento/taharah.html Último acesso em 24 de Maio de 2011.

[3] XAVIER, Francisco Cândido. Voltei. Rio de Janeiro, FEB, 1949, p. 49 a 53. Grifos meus.

[4] VIEIRA, Waldo. Conduta Espírita. Rio de Janeiro, FEB, 2001, p. 125 e 126. Grifos meus.

[5] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Op. cit.,, p. 404.

[6] BACCELLI, Carlos A. À sombra do abacateiro. São Paulo, IDEAL, 1986, p. 107 e 109. 

[7] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Op. cit., p. 72. Grifos do autor.

[8] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Op. cit., p. 405.

[9] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, Op. cit., p. 133.

[10] XAVIER, Francisco Cândido. Fonte Viva. Rio de Janeiro, FEB, 2003, p. 319.

[11] AKHMÁTOVA, Anna. Disponível em: https://www.blocosonline.com.br/literatura/poesia/pi/pi200354.htm Último acesso em 27 de Maio de 2011. Grifos meus. Sobre a autora temos disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Anna_Akhmatova Última consulta em 27 de Maio de 2011.

[12] XAVIER, Francisco Cândido. Fonte Viva, Op. cit., p. 320.

[13] XAVIER, Francisco Cândido. Cartas e Crônicas, p. 3. Disponível em: https://bvespirita.com/Cartas%20e%20Crônicas%20(psicografia%20Chico%20Xavier%20-%20espírito%20Humberto%20de%20Campos).pdf Último acesso em 27 de Maio de 2011.

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O Bem e o Mal - O Livro dos Espíritos, perguntas 629 a 637. Rio de Janeiro, 12 de Abril de 2011.

14/04/2011 20:05

 

            O título da palestra, para nós, pode fazer com que tenhamos respostas prontas a essas questões. Elas podem parecer-nos óbvias. Ninguém, aqui presente, desencarnado ou encarnado, está destituído de conhecimentos prévios a respeito do assunto. Se perguntados sobre a definição de bem e mal, formularemos alguma, a partir daquilo que acreditamos ser um e outro. Temos, em comum, os que aqui nos encontramos, a cultura. Estamos situados historicamente e o conhecimento que guardamos, a respeito deste assunto da noite, bem como de outros, é originado, ou melhor, participa de nossa realidade de tempo e espaço. Influenciamos e somos influenciados. Ao renascermos, encontramos um sistema de valores de um lugar específico, mas que varia de um local para outro. Muitas vezes, em outras encarnações, participamos da construção deste sistema de valores. Não acredito, por exemplo, que sejamos “cristãos de primeira viagem”. Espíritas até podemos ser, já que a Doutrina Espírita é recente, historicamente falando.

            Marilena Chauí, em sua obra “Convite à Filosofia”, conta-nos um pouco sobre Sócrates.

Percorrendo as praças e ruas de Atenas - contam Aristóteles e Platão -, Sócrates perguntava aos atenienses, fossem jovens ou velhos, o que eram os valores nos quais acreditavam e que respeitavam ao agir.

Que perguntas Sócrates lhes fazia? Indagava: O que é a coragem? O que é a justiça? O que é a piedade? O que é a amizade? A elas, os atenienses respondiam dizendo serem virtudes. Sócrates voltava a indagar: O que é a virtude? Retrucavam os atenienses: É agir em conformidade com o bem. E Sócrates questionava: Que é o bem?

As perguntas socráticas terminavam sempre por revelar que os atenienses respondiam sem pensar no que diziam. Repetiam o que lhes fora ensinado desde a infância. Como cada um havia interpretado à sua maneira o que aprendera, era comum, no diálogo com o filósofo, uma pergunta receber respostas diferentes e contraditórias. Após um certo tempo de conversa com Sócrates, um ateniense via-se em duas alternativas: ou zangar-se e ir embora irritado, ou reconhecer que não sabia o que imaginava saber, dispondo-se a começar, na companhia socrática, a busca filosófica da virtude e do bem. [1]

            Irritavam-se, ainda segundo a autora, porque confundiam valores morais com fatos constatáveis em sua vida cotidiana, como, por exemplo, a “bravura” de alguém numa guerra. Além disso, tomavam fatos normais da “vida cotidiana como se fossem valores morais evidentes” [2], ou seja, é certo porque meu antepassado fez. Confundiam “fatos e valores, pois ignoravam as causas ou as razões por que valorizavam certas coisas.” [3] Os atenienses viviam repetindo valores morais sem qualquer reflexão crítica quanto à origem deles.

            Allan Kardec, na questão 629, pede aos Espíritos Superiores uma definição de moral, ao que lhe respondem que “A moral é a regra de bem proceder, isto é, de distinguir o bem do mal. Funda-se na observância da lei de Deus. O homem procede bem quando tudo faz pelo bem de todos, porque então cumpre a lei de Deus.” [4] Bem proceder, para os Espíritos, é ter a capacidade de distinguir o bem do mal. Fundamenta-se no fazer o bem a todos, que eles consideram a lei de Deus. Identificar o que é certo e o que é errado a partir da necessidade de fazer o bem aos demais.

            Essa moralidade está referenciada, ou seja, sabemos de onde vem. A lei de Deus nos foi resumida, por Jesus, naquela sentença “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.” [5] Da resposta dada acima pelos Espíritos, depreende-se que é um mal não praticar o bem. Perder a ocasião de fazer o bem é um erro que cometemos, quem sabe, diariamente. Nas menores ações do cotidiano, tempo oportunidades de testemunhar o Cristianismo, revivido pela Doutrina Espírita, que dizemos adotar. Nos pequenos cuidados com aqueles que nos cercam, naqueles colegas de trabalho, nas pessoas que nos prestam serviços e àquelas pessoas a quem servirmos. Por que mencionamos a reflexão de Sócrates no início? Porque a Doutrina Espírita nos convoca à crença fundamentada na razão. “Amai a Deus, mas sabendo porque o amais; crede nas suas promessas, mas sabendo porque acreditais nela,” [6] já nos falava José, espírito protetor em O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec. Conhecer a origem do nosso conhecimento fortalece-o em nós. Consolidamos nossa escolha porque, mesmo reconhecendo-a situada historicamente (hoje, nos nossos dias, como na época de Jesus), pela razão, enxergamos nela possibilidades de redenção pessoal e, por consequência, social. Fazemos o bem e amamos a Deus porque sabemos os “bastidores da vida”, que se desdobra em ângulos que muita gente não acredita. O Espiritismo, através dos relatos de Espíritos em diferentes situações morais, depois de desencarnados, descortina-nos os resultados das ações morais escolhidas por estes. Felizes, se tiveram uma vida regrada pelo bem, infelizes, se pautados pelos sentimentos de egoísmo e orgulho.

            O Codificador da Doutrina Espírita, na pergunta seguinte, procura aclarar o assunto, indagando aos Espíritos a maneira de se distinguir o bem do mal, ao que eles respondem, quase que repetindo a resposta da pergunta anterior. Informam-nos que “O bem é tudo o que é conforme à Lei de Deus; o mal, tudo que lhe é contrário. Assim, fazer o bem é proceder de acordo com a Lei de Deus. Fazer o mal é infringi-la.” [7] Mas, poderíamos nos perguntar, como distinguir o que é bem e o que é mal? Será que teríamos como? Este questionamento foi transmitido aos Espíritos codificadores, que responderam que “Sim, quando crê em Deus e o quer saber. Deus lhe deu a inteligência para distinguir um do outro.” [8]

            Crer em Deus traz para o indivíduo responsabilidade ético-moral que faz com que se paute de acordo com a crença que esposa. Acreditar em Deus faz com que a criatura humana pense nos resultados futuros de suas ações, nesta e em outra vida. No caso da Doutrina Espírita, essa crença, como observamos, não é desprovida de razão. Não é vinda, unicamente, através de revelações. Ela se fundamenta, sim, na revelação mas, diferente das demais denominações religiosas, estas revelações são comprováveis. Os Espíritos explicaram o fenômeno das mesas girantes, na introdução de O Livro dos Espíritos, informando que eram eles mesmos, as almas dos homens desencarnados, aqueles que os provocavam. E isso foi comprovado, pois os Espíritos prestavam informações que eram checadas, posteriormente, tais como nomes, endereços enquanto vivos, parentescos, etc. Os Espíritos, ao proporem esta resposta, não estão preocupados com a eventual definição que daremos da idéia de bem, uma vez que nos reconhece legatários da tradição cristã que, na conhecida “regra de ouro”, coloca-nos a necessidade de fazermos aos outros aquilo que gostaríamos que nos fizessem. Assinalo que este pensamento está formulado em diversas tradições e tempos, desde o “O que você não quer que lhe façam, não o faça aos demais”, atribuído à Confúcio, ou o “Nenhum de vocês é um fiel até que deseje ao seu semelhante aquilo que deseja para si mesmo” do Islã ou, por fim, o “Homem, aquilo que você não gosta, não o faça a seus semelhantes”[9], da tradição africana de BA-Congo. Além disso, a exemplaridade de Jesus convoca-nos, igualmente, a copiar-lhe a conduta. Não por acaso os Espíritos da Codificação apontam-no como guia e modelo neste mesmo capítulo de O Livro dos Espíritos.

            Distinguir o bem do mal, quando faltam a crença em Deus e o desejo de compreender, pode ser difícil. Essa dificuldade na definição de um e outro me fez recordar um clássico da literatura mundial, do escritor francês Victor Hugo, “Os Miseráveis”. Penso que ninguém deve desencarnar sem ler esta obra. É uma lição de humanidade. Conta-se a história de Jean Valjean, um homem que foi preso por roubar um pão, para alimentar seus sobrinhos, e fora condenado como criminoso comum, virando um trabalhador forçado. Na cadeia degrada-se, procura fugir diversas vezes, sem resultado. Dezenove anos escorrem na esteira do tempo quando ele é solto. Procura recomeçar, com dificuldades de domar suas feras interiores. Na obra, existe um personagem chamado Javert que pode lembrar muita gente que conhecemos. É um inspetor de Polícia, filho de uma cartomante com um homem que se encontrava nas galés (realizando trabalhos forçados). Nasceu numa prisão.

Esse homem era composto de dois sentimentos muito simples e relativamente muito bons, mas que ele tornava maus por exagerá-los; o respeito à autoridade e o ódio à rebelião. E a seu ver o roubo, o homicídio, todos os crimes, enfim, eram apenas formas de rebelião. Ele envolvia, em uma espécie de fé cega e profunda, todos os que tinham uma função no Estado, desde o primeiro-ministro até o guarda campestre, e cobria de desprezo, de aversão e de asco tudo o que tivesse, por uma vez, ultrapassado o limite legal do mal. Era absoluto e não admitia exceções. De um lado dizia: “O funcionário não se engana, o magistrado nunca está errado”. E, de outro lado: “Estes estão irremediavelmente perdidos. Nada de bom pode sair deles”. [10]

            Este homem não acredita na mudança dos seres humanos para melhor, bem como cria na infalibilidade da lei e de seus homens. Um pobre convencido da eficiência da visão dos poderosos, e que trabalhava, porque não, na manutenção do status quo. A sua religião era a Lei. Fica fácil supor que ele perseguia a Jean Valjean. Num determinado momento da história, recebe ajuda daquele que considerava um perdido. Deve-lhe a vida!

Dever a vida a um malfeitor; aceitar essa dívida e reembolsá-la; achar-se contra a própria vontade, no mesmo nível de um foragido da justiça, e pagar-lhe um favor com outro favor; deixar que lhe dissessem: Vá embora, e por sua vez dizer: Está livre; sacrificar por motivos pessoais o dever, essa obrigação geral, e sentir nesses motivos pessoais algo de geral também, e talvez de superior (...)

Que fazer agora? Entregar Jean Valjean era errado; deixar Jean Valjean livre era errado. No primeiro caso, o homem da autoridade descia abaixo do homem preso; no segundo, um miserável ia mais alto que a lei e metia-lhe o pé por cima. (...)

Jean Valjean o desconcertava. Todos os axiomas que haviam sido o ponto de apoio de toda a sua vida desmoronavam diante desse homem. A generosidade de Jean Valjean para com ele, Javert, o oprimia. (...) Javert sentia que algo horrível penetrava em sua alma, a admiração por um bandido. Respeitar um bandido, seria possível? (...) Por mais que se debatesse, em seu íntimo reconhecia a sublimidade desse miserável. Isso era odioso.

Um malfeitor benfazejo, um miserável compassivo, meigo, prestativo, clemente, pagando com o bem o mal, perdoando a quem o odiava, preferindo a compaixão à vingança, preferindo até perder-se a perder seu inimigo, salvando quem nele batera, ajoelhado no alto da virtude, mais vizinho do anjo que do homem! Javert era obrigado a confessar a si mesmo que esse monstro existia! (...)

Era forçado a reconhecer que a bondade existia. Esse criminoso fora bom. E ele mesmo, coisa incrível, acabara de ser bondoso. (...)

Para Javert, o ideal não era ser humano, ser grande, sublime; era ser irrepreensível. [11]

            Por dever-lhe a vida, soltou-o. Por isso o seu conflito. Não acreditava na redenção do Ser Humano. Descobriu-se em erro. Seu sistema de crenças, de valores, estava falido, diante dele. Algo destoou daquilo que ele acreditava. Aconteceu algo que não esperava. Receber lição de humanidade onde não julgava que fosse possível haver humanidade. Javert não suporta o dilema que se colocou em sua frente. As leis, as regras, são feitas pelos homens, com interesses específicos em situações específicas. Via de regra, interesses de classes sociais determinam essas regras do jogo. As Leis devem ser feitas para o homem, devem existir em função dos seres humanos enquanto coletividade, não para o atendimento de interesses específicos de classes específicas.

633. A regra do bem e do mal, que se poderia chamar de reciprocidade ou de solidariedade, é inaplicável ao proceder pessoal do homem para consigo mesmo. Achará ele, na lei natural, a regra desse proceder e um guia seguro?

Quando comeis em excesso, verificais que isso vos faz mal. Pois bem, é Deus quem vos dá a medida daquilo de que necessitais. Quando excedeis dessa medida, sois punidos. Em tudo é assim. A lei natural traça para o homem o limite das suas necessidades. Se ele ultrapassa esse limite, é punido pelo sofrimento. Se atendesse sempre a voz que lhe diz - basta, evitaria a maior parte dos males, cuja culpa lança à Natureza.” [12]

            O que é o necessário para nós? Qual a medida da necessidade? Onde termina o necessário e começa o supérfluo? Como estabelecer este limite honestamente para nós? Para estabelecê-lo, é necessário que hajamos com honestidade conosco mesmo, sem tentarmos criar recursos para burlar essa medida, tentando aliviar nossa barra. Tudo que é bom, que nos dá prazer - porque se o prazer fosse ruim não teria sido posto à nossa frente por Deus -, se utilizado em excesso é prejudicial. Que tenhamos o bom senso, no entanto, de entender que, quando digo isso, não me refiro ao vício em substâncias químicas, sejam elas o álcool, a maconha ou a cocaína. O excesso pode tirar-nos do roteiro, pode fazer com que esqueçamo-nos daquilo que viemos fazer aqui na Terra. Estamos aqui para transformarmo-nos em pessoas melhores, crescermos moralmente e intelectualmente. Resgatarmos os diversos erros que cometemos em outras existências. Não estamos a passeio. A vida nos oferece oportunidades de sermos úteis a cada minuto. Em qualquer tempo podemos ajudar, podemos ser úteis e podemos crescer. “Poxa, mas eu estou aqui, sentado, ouvindo a palestra, como posso ser útil agora?” Pode ser útil procurando raciocinar em cima do que é dito, refletir no que está sendo exposto, pensar maneiras de operacionalizar o que dizemos ou, simplesmente, direcionar um bom pensamento para alguém. Uma mensagem atribuída a Francisco Cândido Xavier é muito interessante, a respeito da questão do necessário e do supérfluo, que é tratada, também, em O Evangelho Segundo o Espiritismo.

Uns queriam um emprego melhor; outros, só um emprego.

Uns queriam uma refeição mais farta; outros, só uma refeição.

Uns queriam uma vida mais amena; outros, apenas viver.

Uns queriam pais mais esclarecidos; outros, ter pais.

Uns queriam ter olhos claros; outros, enxergar.

Uns queriam ter voz bonita; outros, falar.

Uns queriam silêncio; outros, ouvir.

Uns queriam sapato novo; outros, ter pés.

Uns queriam um carro; outros, andar. 

Uns queriam o supérfluo; outros, apenas o necessário. [13]

            Às vezes nós temos tanto que nem percebemos o quanto temos, em se comparando com aqueles privados de quase tudo, até, às vezes, do direito de viverem.

            Kardec, na questão 634, indaga aos Espíritos o porquê do mal estar na natureza das coisas, referindo-se ao mal moral. Questiona, então, se Deus não poderia ter criado a Humanidade em condições melhores. Na resposta, as Entidades Venerandas relembram-lhe algumas respostas de perguntas anteriores.

(...) os Espíritos foram criados simples e ignorantes (115). Deus deixa que o homem escolha o caminho. Tanto pior para ele, se toma o caminho mau: mais longa será sua peregrinação. Se não existissem montanhas, não compreenderia o homem que se pode subir e descer; se não existissem rochas, não compreenderia que há corpos duros. É preciso que o Espírito ganhe experiência; é preciso, portanto, que conheça o bem e o mal. Eis por que se une ao corpo.” (119) [14]

            Relembrando as condições iniciais do Espírito, no seu estado de simplicidade e ignorância, apontam-nos os Espíritos que Deus deixa-nos o mérito da escolha. Se escolhermos o bem, teremos nossas eternidades abreviadas, do contrário, serão maiores. Mas, o que é fundamental, chegaremos a destinação final. Só existe uma fatalidade no universo, que a Doutrina Espírita afirma: Seremos felizes, porque, um dia, seremos Espíritos puros. Chamaram-me a atenção os exemplos que se valeram os Espíritos em sua resposta. Se não fossem as montanhas, não compreenderíamos a possibilidade de subirmos e descermos. Se não houvesse as rochas, não compreenderíamos a existência de corpos duros. O saber pela experiência, pela experimentação. É preciso que o Espírito ganhe experiência. Diante da dificuldade, inventar-se, reinventar-se. Lembrei-me de um livro de História, Uma História da Guerra, de John Keegan. Recordei-me que muitos exércitos perderam combates porque não modificaram seus métodos de luta. Quando eles ganhavam os outros, eles procuravam repetir ao máximo suas estratégias e técnicas. Só que ficavam conhecidos e, diante de inovações, eram superados. Os problemas com que nos defrontamos são esses exércitos que lutam diferente, pedindo-nos posturas alternativas, para superar-lhes. Uma feliz vinheta da TV Futura diz que não são as respostas que movem o mundo, mas as perguntas. As questões que a vida nos coloca, que precisam ser respondidas. Ao realizar a pesquisa sobre as perseguições sofridas por alguns espíritas na cidade do Rio de Janeiro nos anos 1930 e 1950[15], tive contato com um livrinho de pesquisa, recomendado pela professora orientadora, Laura Antunes Maciel, chamado “A pesquisa em História” [16] onde as autoras citavam uma frase de Sócrates que pude testemunhar a validade: “Quando eu descobri todas as respostas da vida, mudaram-se as perguntas.” À medida que a pesquisa respondia as questões que eu havia me colocado para pesquisar, novas questões surgiam-me, abrindo novas possibilidades de pesquisas. Com a vida, concordando com Sócrates, é assim. A descoberta do antibiótico, ao passo do enorme benefício que nos trouxe no combate às bactérias nocivas ao nosso organismo, colocou-nos algumas questões: Como fazer, atualmente, com as bactérias super-resistentes? Como remediar os efeitos colaterais da medicação? E por aí a fora.

            Pode causar estranheza quando, na resposta dos Espíritos, encontramos dito que é preciso que o homem conheça o bem e o mal, como se fazer o mal fosse uma necessidade para o crescimento. Se levarmos em conta que “o mal é a ausência do bem, como o frio é a ausência do calor” [17] compreenderemos que, ao não fazer o bem, o homem estará, naturalmente, fazendo o mal. Aliás, em diversos momentos da Codificação é dito que é um mal não fazer o bem. Ora, o homem, na situação de suas primeiras encarnações, onde está adquirindo experiência, aprendendo ainda, em diversos momentos irá deixar de praticar o bem, na melhor das hipóteses. Isso quando não praticar o mal deliberadamente, ou, dito de outra forma, na intenção de prejudicar seu semelhante. Não conheço criança nenhuma que tenha aprendido a caminhar sem cair, nem alguém que tenha aprendido a andar de bicicleta sem levar tombo. Dos erros, extraímos lições, experiências, para que não tornemos a errar, ou a pecar, como falava Jesus.

            Kardec, nos seus comentários afirma que

As condições de existência do homem mudam de acordo com os tempos e os lugares, do que lhe resultam necessidades diferentes e posições sociais apropriadas a essas necessidades. Pois que está na ordem das coisas, tal diversidade é conforme à lei de Deus, lei que não deixa de ser una quanto ao seu princípio. [18]

            O homem organiza de diferentes maneiras a sua vida, de acordo com o tempo e o local em que vive. Refiro-me à estratificação social, bem como àquilo que considera necessário para manter-se. Comparando-se o modo de viver dos seres humanos na Terra, mesmo nos dias de hoje, é possível perceber a diversidade de formas e, inclusive, temporalidades, pelas permanências no tempo de costumes e práticas ancestrais. O que serviu em um tempo, deixa de se fazer necessário no futuro. Modifica-se, apesar dessas permanências, de acordo com as novas questões que a sociedade vai colocando-se, à medida que situações novas surjam desafiadoras. Os contatos humanos servem para operar essas mudanças. Incorporam-se costumes, maneiras de viver, antigas formas de organizar a vida são deixadas de lado.

            Muitas vezes, algumas religiões que, posicionando-se contrárias ao Espiritismo, lançam mão de idéias inscritas em livros do Antigo Testamento Bíblico, que procuram legitimar a proibição da comunicação com os mortos, atribuída a Moisés. Sem adentrarmos nas questões de autenticidade histórica (se foi Moisés mesmo quem escreveu, que tipos de mudanças o texto pode ter sofrido no tempo, etc.), reflito: Se alguém lança mão de proibições, cuja origem situa-se a mais de 3.500 anos, num tempo e local totalmente diverso do nosso, portanto descontextualizadas, é que considera estes textos de lei legítimos, porque não, de aplicação geral para o nosso tempo. Dessa maneira, trago alguns trechos desta legislação, contida nos livros do Antigo Testamento, utilizados para responder a Laura Schlessinger, apresentadora de TV norte-americana que destratou os homossexuais:

a. Quando eu queimo um touro no altar como sacrifício, eu sei que isso cria um odor agradável para o Senhor (Levíticos 1:9). O problema são os meus vizinhos. Eles reclamam que o odor não é agradável para eles. Devo matá-los por heresia?

b. Eu gostaria de vender minha filha como escrava, como é permitido em Êxodo 21:7. Na época atual, qual você acha que seria um preço justo por ela?

(...)

d. Levíticos 25:44 afirma que eu posso possuir escravos, tanto homens quanto mulheres, se eles forem comprados de nações vizinhas. Um amigo meu diz que isso se aplica a mexicanos, mas não a canadenses. Você pode esclarecer isso?

e. Eu tenho um vizinho que insiste em trabalhar aos sábados. Êxodo 35:2 claramente afirma que ele deve ser morto. Eu sou moralmente obrigado a matá-lo mesmo?

(...)

g. Levíticos 21:20 afirma que eu não posso me aproximar do altar de Deus se eu tiver algum defeito na visão. Eu admito que uso óculos para ler. A minha visão tem mesmo que ser 100%, ou pode-se dar um jeitinho?[19]

            Imaginem se tomamos estas recomendações, das tradições do Antigo Testamento, como atemporais, e as aplicamos na atualidade? Lamentavelmente, no mundo muçulmano, temos a instituição do apedrejamento, a lembrar-nos a brutalidade que existe em nós, mas não podemos ser condescendentes com os ocidentais e suas penas de morte, legítimas por lei ou não, bem como suas guerras contra o terrorismo.

636. São absolutos, para todos os homens, o bem e o mal?

A lei de Deus é a mesma para todos; porém, o mal depende principalmente da vontade que se tenha de o praticar. O bem é sempre o bem e o mal é sempre o mal, qualquer que seja a posição do homem. Diferença só há quanto ao grau de responsabilidade.” [20]

                Desenvolvendo o raciocínio da questão anterior, na pergunta 637 indaga sobre a culpa de um canibal, pelo fato de nutrir-se da carne humana, ao que os Espíritos reafirmam a importância da vontade no caso, acrescentando que “tanto mais culpado é o homem, quanto melhor sabe o que faz.” [21] Kardec, nos comentários que tece a respeito da questão, acrescenta que “a responsabilidade é proporcionada aos meios de que ele (o homem) dispõe para compreender o bem e o mal”.[22]

            O mal, desta maneira, está ligado à intencionalidade. E não é dessa maneira que nosso sistema judiciário observa a questão, ao distinguir, por exemplo, o homicídio doloso (com a intenção de matar) do homicídio culposo (sem esta intenção)? Perdoem-me os juristas se simplifiquei a questão, mas tomando-a por este aspecto, simplesmente, é possível concluir que, aí, a justiça humana está em sintonia com a Justiça Divina. Pelo menos no papel. O homem que rouba para matar a fome de crianças, como Jean Valjean do livro de Victor Hugo, pode ser menos culpado que algum criminoso do colarinho branco, que age com cálculo e frieza. Ambos, no entanto, erraram, guardadas as devidas proporções. No entanto - e é a reflexão que quero deixar-, que tipo de sociedade é a nossa, cujos valores e necessidades fictícias, modelos de sucesso colocados como objetivo último da felicidade humana, fazem com que os endinheirados procurem atingir seus objetivos custe o que custar, acumulando cada vez mais? Será que a opulência de alguns não causa a miséria daqueles que roubam para matar a fome, no desespero? Isso, se não contarmos aqueles que, graças a Deus, não tem coragem de roubar, mas, lamentavelmente, morrem desnutridos...

 


[1] CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, Ed. Ática, 2000, p. 436.

[2] Idem, p. 437.

[3] Idem.

[4] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, Rio de Janeiro, FEB, 1996, p. 310.

[5] Mateus 22: 34 a 40.

[6] KARDEC. Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo, p. 306. Disponível em: https://www.kardec.com/litgratuita/evan_br.pdf Último acesso em 30 de Março de 2011.

[7] KARDEC. Allan. O Livro dos Espíritos, op. cit., p. 310.

[8] Idem.

[9] FREIRE, Emerson. A regra de ouro. Disponível em: https://emeric.wordpress.com/2007/12/06/a-regra-de-ouro/ Último acesso em 30 de Março de 2011.

[10] HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo, Martin Claret, 2007, vol. 1, p. 182.

HUGO, Victor. Os Miseráveis. São Paulo, Martin Claret, 2007, p. 478-481.

[12] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, op. cit., p. 310-311.

[13] XAVIER. Francisco Cândido. Necessário e supérfluo. Disponível em: https://www.ideariumperpetuo.com/superfluo-necessario.htm Último acesso em 30 de Março de 2011.

[14] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, op. cit., p. 311.

[15] OLIVEIRA, Marco Aurélio Gomes. “Livres”, porém perseguidos: O cotidiano das relações entre espíritas e a Polícia na cidade do Rio de Janeiro (1930-1950). Rio de Janeiro, UFF, 2010.

[16] VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha; KHOURY,Maria Aun. A Pesquisa em História. São Paulo: Editora Ática, 2002, p.71.

[17] KARDEC, Allan. A Gênese. Rio de Janeiro, FEB, 1996, p. 72.

[18] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, op. cit., p. 311.

[19] Lamentavelmente, não possuo a referência. Este texto eu copiei de uma comunidade do Orkut há anos atrás.

[20] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos, op. cit., p. 312.

[21] Idem.

[22] Idem.

 

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Os animais e o homem

05/02/2011 22:24

Os animais e o homem - O Livro dos Espíritos, perguntas 602 a 610. Rio de Janeiro, 8 de Fevereiro de 2011.

 

            Dada à extensão do tema, no que diz respeito à quantidade de perguntas de O Livro dos Espíritos que o abordam, preferiu-se dividi-lo em duas partes. A fim de que não percamos a linha de raciocínio estabelecida na exposição do tema por Allan Kardec, farei comentários sobre a primeira parte.

            Na primeira questão do assunto, a 592, os Espíritos são indagados quanto à linha de demarcação que separa os homens dos animais, no que diz respeito à inteligência. Na resposta à indagação, os Espíritos afirmam que o homem é um ser à parte e que a Natureza lhe ofereceu tudo, de maneira que ele pode, utilizando-se de sua inteligência, inventar tudo de que ele necessite para conservar-se. Afirmam, ainda, que o homem se reconhece pela faculdade de pensar em Deus. Existe, aliás, alguma notícia, nos meios acadêmicos, de que algum grupamento humano considerado “primitivo”, não tenha exercido a crença em Deus, ou em algum ente que lhe seja superior? Numa breve pesquisa que fiz, na internet, não encontrei nada a respeito.

            No desenvolvimento da exposição, é apontado que os animais possuem instintos, mas que não obram apenas por ele. Utilizam-se de inteligência, ainda que limitada, a fim de satisfazerem a suas necessidades físicas. O desenvolvimento excepcional que demonstrem se dá por conta da influência do homem, que lhe pode ensinar certas coisas, limitadas, de acordo com suas capacidades. Um excelente exemplo disso é o adestramento de cães que, capacitados, muitas vezes, conduzem até os indivíduos cegos.

            É apontado também que os animais possuem certa linguagem, não articulada em sílabas, evidentemente. Possuem meios de comunicação entre si, o que o fazem para o atendimento de suas necessidades de sobrevivência. Isso se dá, também, com a relativa liberdade de ação que dispõem, por não terem os mesmos deveres que os seres humanos. Pelo fato de demonstrarem relativa inteligência e, consequentemente, alguma liberdade, Kardec indaga aos Espíritos, na pergunta 597 se existe neles algum princípio independente da matéria, ao que os Espíritos afirmam-lhe que sim e que sobrevive a experiência da morte. Dizem-lhe que a distância que as almas dos homens da dos animais é equivalente a que medeia entre a alma dos homens e de Deus.

            Mas... E depois da morte, o que se passaria com as almas dos animais? Conservariam a sua individualidade e a consciência de si mesmas? A individualidade, segundo os Espíritos, é mantida, mas a vida inteligente permaneceria em estado latente. Na questão 600 Kardec deseja saber se elas permaneceriam numa espécie de erraticidade, como a alma humana, no espaço de tempo que separa uma encarnação da outra. Respondem-lhe os Espíritos que elas permaneceriam sim num estado deste tipo, mas que não são Espíritos errantes, seres que pensam e obram por sua própria vontade. A consciência de si mesmos é o que constitui o atributo principal dos Espíritos, o que não ocorre com eles. Dessa maneira, após a morte, os animais seriam classificados pelos Espíritos incumbidos desta tarefa e utilizados quase imediatamente, não lhe dando tempo de estabelecerem relações com outras criaturas. Essa questão é discutida, também, em O Livro dos Médiuns, também de Allan Kardec, no capítulo que trata das evocações, no item 283 que fala da evocação dos animais.

36ª Pode evocar-se o Espírito de um animal?

“Depois da morte do animal, o princípio inteligente que nele havia se acha em estado latente e é logo utilizado, por certos Espíritos incumbidos disso, para animar novos seres, em os quais continua ele a obra de sua elaboração. Assim, no mundo dos Espíritos, não há, errantes, Espíritos de animais, porém unicamente Espíritos humanos. [1]

            A questão da presença ou não de animais no mundo espiritual é controversa no âmbito do movimento espírita, uma vez que na literatura espírita, particularmente pela psicografia de Francisco Cândido Xavier, em “Nosso Lar”, do Espírito André Luiz, relata-se a presença destes sendo aproveitados em algumas atividades. Em certa ocasião, Divaldo Pereira Franco esteve em determinada cidade brasileira para uma conferência e

ao ser recebido na casa que iria hospedá-lo, assustou-se com um cachorro grande, que lhe pulou no peito. A anfitriã percebeu-lhe a reação:

- O que foi, Divaldo?

Foi o cachorro, mas está tudo bem!

Que cachorro, Divaldo, aqui não tem cachorro nenhum!

- Tem sim, esse pastor aí!

- Divaldo, eu tive um cão da raça pastor alemão, mas ele morreu há um ano e meio!

E Divaldo concluiu: - era um cão espiritual! [2]

            Entretanto, José Herculano Pires, no seu livro “Mediunidade (Vida e Comunicação)” nos diz que

Há casos impressionantes de materialização de animais em sessões experimentais. Há casos espontâneos de aparições de animais-fantasmas em vários relatos de viagens e de pesquisas psíquicas. Esses casos estimulam a idéia da mediunidade animal. As pessoas que se deixam impressionar por esses casos certamente não se lembraram de que as materializações são produzidas pelos espíritos, que tanto podem materializar uma figura humana, como um par de sapatos ou uma figura animal, Kardec nos dá, em O Livro dos Médiuns, excelente estudo sobre o laboratório do mundo invisível, em que todos esses casos são esclarecidos. [3]

            Mas como seriam essas materializações de animais, mencionadas por Herculano Pires? Será que os animais mostravam-se dinâmicos, atuantes, com demonstrada autonomia no meio onde se encontravam? Ernesto Bozzano, pesquisador espírita italiano, desencarnado em 1943, no seu livro “Os animais tem alma?”, que trata de narrativa de casos por ele reunidos, ao se referir a aparição de um “cão desencarnado”, estudando as possibilidades explicativas do fenômeno, aponta que

dever-se-ia excluir a hipótese de uma projeção telepática por parte de um morto, visto que uma projeção dessa natureza provocaria a percepção alucinatória de uma forma de animal plasticamente inerte ou que se deslocaria automaticamente, mas nunca a de uma forma animal consciente do meio em que se acha. [4]

            O caso mencionado pelo autor italiano passara-se numa casa com fama de assombrada, onde o narrador e outros membros de sua família observaram a presença de um pequeno cão branco em diversas situações, de maneira atuante, não automática. É compreensível que uma aparição, ou materialização, que não mostrasse dinamismo, que fosse estática, pudesse ser considerada como originada pelos Espíritos, capazes de operar com os fluidos. Agora, no caso supostamente ocorrido com Divaldo Franco e com o apontado por Bozzano em sua obra, é sugestivo acreditar que se tratou, efetivamente, de aparições do princípio inteligente dos animais, que aqui chamamos “alma dos animais” para nos facilitar a análise. Ele, no entanto, mostra-se bastante prudente quanto aos resultados de sua pesquisa quando afirma que

se conseguiu a demonstração necessária para provar a existência e a sobrevivência da psique animal. A hipótese em apreço não podia ser então considerada senão como cientificamente legítima, embora ainda apenas a título de hipótese de trabalho, esperando julgá-la como uma verdade definitivamente adquirida para a ciência quando o acúmulo dos fatos nos permita analisar a fundo este assunto tão importante. [5]

            Como se observa, a questão não é simples. Não o foi para Bozzano, como não o era para Kardec que, na Revista Espírita de maio de 1865, diante de uma correspondência recebida que trazia uma narrativa desta natureza afirmou que “os fatos desse gênero não são ainda bastante numerosos, nem bastante averiguados para deles deduzir uma teoria afirmativa ou negativa.” [6] Assim, atenho-me à prudência de esperar desenvolvimento posterior do assunto, de acordo com a postura do Codificador ficando, a princípio, com o que é exposto na resposta da questão 600 de O Livro dos Espíritos.

            Na questão 601, Kardec indaga aos Espíritos da codificação se os animais, assim como os homens, estão submetidos a uma lei progressiva, ao que eles respondem afirmativamente, informando ainda que, nos mundos superiores, onde os homens gozam de maior adiantamento, os animais também o são mais desenvolvidos, funcionando para as criaturas humanas como servidores inteligentes. Essa questão coincide com a 591, onde é perguntado se as plantas são de natureza mais perfeita, nos mundos superiores, quando os Espíritos respondem que “Tudo é mais perfeito.” [7] Ressaltam, no entanto, que as plantas são sempre plantas, os animais sempre animais e os homens sempre homens.

            Os animais, segundo os Espíritos, progridem pela força das coisas, não por ato de suas próprias vontades. Por isso, não estão sujeitos à expiação. Poderiam, alguns, indagarem, o porquê dos sofrimentos dos animais. Léon Denis, em “O Problema do Ser, do Destino e da Dor” afirma que isso, para eles, já é um trabalho de evolução. Adquirem, desta forma, os primeiros rudimentos da consciência de si mesmos. [8]   Arriscaria dizer que, nos seus esforços pela sobrevivência, nos seus contatos com outros animais e, principalmente, com as criaturas humanas, também desenvolver-se-iam de alguma maneira. Porém, no estágio atual em que nos encontramos não temos como quantificar esse desenvolvimento. Penso que isso pode ser possível no mundo espiritual, através da atuação dos Espíritos responsáveis pelo encaminhamento evolutivo dos animais.

            Na questão 603 Kardec deseja saber se, nos mundos superiores, os animais conhecem a Deus, ao que os Espíritos informam-lhe que não, que para eles o homem é um deus, como antigamente os espíritos eram deuses para os homens. Penso que esta relação entre os homens e os animais, formulada pelos Espíritos, é extensiva a todos os tipos de mundos, uma vez que, como já vimos, é enorme a distância que separa os animais dos homens. Assim, para eles, os homens funcionariam como uma espécie de divindade. Acho isso plenamente observável em nossos animais de estimação, aqueles que foram, no tempo, domesticados. Já notaram a fidelidade canina? Tenho um cão, chamado Popó, que segue minha mãe como se fosse sua sombra. Se por acaso ele dorme e ela sai de perto, quando ele acorda, ele a segue e revista todos os cômodos da casa atrás dela, só parando quando a encontra. Quando minha mãe esteve internada, ele não entrava em casa quase, ficava na varanda de casa, às vezes no quintal, observando a rua, prestando atenção, aguardando-lhe o retorno. Quando ela volta da rua, é recebida com uma explosiva alegria e toda a delicadeza que um cachorro grande e desengonçado pode demonstrar. E com todas as conseqüências dessa alegria, traduzida em fortes esbarrões.

            Não podemos chamar a 604 de O Livro dos Espíritos de uma pergunta. Trata-se de uma afirmação de Kardec, que acumula informações da questão 601 deduzindo-lhe conseqüências.

604. Pois que os animais, mesmo os aperfeiçoados, existentes nos mundos superiores, são sempre inferiores ao homem, segue-se que Deus criou seres intelectuais perpetuamente destinados à inferioridade, o que parece em desacordo com a unidade de vistas e de progresso que todas as suas obras revelam.

“Tudo em a Natureza se encadeia por elos que ainda não podeis apreender. Assim, as coisas aparentemente mais díspares tem pontos de contacto que o homem, no seu estado atual, nunca chegará a compreender. Por um esforço da inteligência poderá entrevê-los; mas, somente quando essa inteligência estive no máximo grau de desenvolvimento e liberta dos preconceitos do orgulho e da ignorância, logrará ver claro na obra de Deus. (...)” [9]

            Encadeamentos na obra de Deus que não podemos apreender. Pontos de contato entre as coisas aparentemente mais díspares. Quando nos libertarmos dos preconceitos do orgulho e da ignorância. Estes preconceitos foram aqueles que alimentaram ódios raciais na época de Kardec e, lamentavelmente, na nossa. Foram aqueles que recusaram o estatuto de criaturas humanas, por muito tempo, aos negros, aos índios. Foram aqueles que movimentaram os nazistas comandados por Adolf Hitler no extermínio de judeus e eslavos. Os preconceitos que dividem as criaturas de Deus. Imaginem o terror que assalta aos preconceituosos a possibilidade de que, aqueles de quem eles tentam se diferenciar, são seus iguais... Então, além de terem que lidar com seus preconceitos raciais, com supostas superioridades dos brancos sobre os sujeitos de outra cor de pele, os homens da época de Kardec ainda receberam a “novidade” de existir, entre eles e os animais, sim, os animais, algum ponto de contato. Imagino que alguns, mesmo que se diziam espíritas, devem ter se arrepiado com isso.

            No desdobramento da questão (604 a) ficamos sabendo que a inteligência é uma propriedade comum, um ponto de contato entre as almas dos homens e a dos animais, ainda que estes só possuam a inteligência da vida material. Não é novidade, porque essa reflexão retoma a resposta da questão 593, que fala da inteligência limitada deles. A novidade é estabelecer a relação entre ambas...

            Nas questões 605 e 605 “a” Kardec, tentando cercar a questão por todos os lados e, quem sabe, para atender aqueles de alguma maneira simpáticos à teoria de que os seres humanos tivessem mais de uma alma, de acordo com as diferentes tendências psicológicas (intelectuais e emocionais) que trariam em si, formula o seguinte:

605. Considerando-se todos os pontos de contacto que existem entre o homem e os animais, não seria lícito pensar que o homem possui duas almas: a alma animal e a alma espírita e que, se esta última não existisse, só como o bruto poderia ele viver? Por outra: que o animal é um ser semelhante ao homem, tendo de menos a alma espírita? Dessa maneira de ver resultaria serem os bons e os maus instintos do homem efeito da predominância de uma ou outra dessas almas?

“Não, o homem não tem duas almas. O corpo, porém, tem seus instintos, resultantes da sensação peculiar aos órgãos. Dupla, no homem, só é a Natureza. Há nele a natureza animal e a natureza espiritual. Participa, pelo seu corpo, da natureza dos animais e de seus instintos. Por sua alma, participa da dos Espíritos. [10]

            Essa possibilidade de mais de uma alma habitar o mesmo corpo vez que outra surge em O Livro dos Espíritos, o que me faz supor que era uma hipótese aceita correntemente por certo número de pessoas ou até, quem sabe, pelo o próprio Kardec. Evidentemente, se dele, modificou seu ponto de vista. Quem sabe uma História das idéias psicológicas na França do século XIX não poderia dar pistas para a questão da presença desta idéia? No desdobramento da pergunta, Kardec compreende que, além de nossas próprias imperfeições, das quais temos que nos livrar, temos ainda que lutar contra a influência da matéria. E os Espíritos ainda nos dizem que “quanto mais inferior é o Espírito, tanto mais apertados são os laços que o ligam à matéria.” [11]  Imagino que, num calor “selvagem” que faz numa cidade como o Rio de Janeiro (escrevo isso em janeiro para apresentar em fevereiro, pleno verão), para muitas pessoas seja difícil resistir a se banhar na praia, largando responsabilidades maiores. A sobrevivência material coloca-nos necessidades que temos que atender. Essas necessidades tornam-se anormais quando exageradas por nós. Aí temos os casos, por exemplo, dos glutões e dos viciados em sexo. Como é difícil um regime. Como é difícil largar a gordura, o sal e o açúcar! Conta-se que Santo Agostinho, antes de sua conversão, teria dito: “Dai-me a castidade e a continência, mas não agora.” [12] Cada um de nós consegue fazer idéia deste tipo de luta, porque, afinal de contas, vivemo-las no nosso cotidiano.

            As almas dos animais são constituídas pelo mesmo princípio inteligente que formou a dos homens, com a diferença de que nestes ele passou por uma elaboração que o coloca acima deles. A questão 607, no meu entendimento, é a chave para o assunto “Os animais e o homem”. Assim formula Kardec:

607. Dissestes (190) que o estado da alma do homem, na sua origem, corresponde ao estado da infância na vida corporal, que sua inteligência apenas desabrocha e se ensaia para a vida. Onde passa o Espírito essa primeira fase do seu desenvolvimento?

“Numa série de existências que precedem o período a que chamais Humanidade.”

a) - Parece que, assim, se pode considerar a alma como tendo sido o princípio inteligente dos seres inferiores da criação, não?

“Já não dissemos que tudo em a Natureza se encadeia e tende para a unidade? Nesses seres, cuja totalidade estais longe de conhecer, é que o princípio inteligente se elabora, se individualiza pouco a pouco e se ensaia para a vida, conforme acabamos de dizer. É, de certo modo, um trabalho preparatório, como o da germinação, por efeito do qual o princípio inteligente sofre uma transformação e se torna Espírito. Entra então no período da humanização, começando a ter consciência do seu futuro, capacidade de distinguir o bem do mal e a responsabilidade dos seus atos. (...) Acreditar que Deus haja feito, seja o que for, sem um fim, e criado seres inteligentes sem futuro, fora blasfemar da sua bondade, que se estende por sobre todas as suas criaturas. [13]

            Falam, ainda, os Espíritos, que a humanização dos animais não se dá na Terra, via de regra, começando em mundo que lhe são ainda inferiores. Entretanto, aponta que isso pode acontecer aqui, não se constituindo isso uma regra, muito mais uma exceção. Eis que os animais evoluem até atingirem a condição humana! Não dá para medir o tempo que leva. Deve ser o tempo que levaremos para compreendermos e “vermos” a Deus. As encarnações em diferentes situações no reino animal seriam ensaios para a vida de Espírito. Deus não faria seres apenas para nos recrearem as vistas, para simplesmente nos servirem. Ao nos servirmo-nos deles, ao desempenharem tarefas, crescem, evoluem. Como? Não sei. A questão pede desenvolvimentos posteriores que, dificilmente, alcançaremos na Terra. “Na planta, a inteligência dormita; no animal, sonha; só no homem acorda, conhece-se, possui-se e torna-se consciente (...)” [14] já nos falava Léon Denis na obra que citamos.

            Esta questão, contudo, também não foi de fácil aceitação, mesmo por Kardec. Vital Cruvinel, num artigo na internet, faz interessante estudo do assunto, utilizando-se de passagens da Revista Espírita entre 1860 e 1865. Neste primeiro ano da série, no mês de março, ao estudar os Espíritos das pessoas vivas, Kardec questiona: “65. Pode aperfeiçoar-se ao ponto de se tornar um Espírito humano? - R. Ele o pode, mas depois de passar por muitas existências animais, seja no nosso planeta terrestre, seja em outros.” [15] 

            Cruvinel aponta que, nos meses seguintes, houve um recuo de posições, com outros artigos apontando para a idéia de que o homem é um ser a parte na criação. Entretanto, depois de dois anos sem publicar artigos sobre animais, Kardec publica dois, colocando um ponto de interrogação na questão.

Da perfeição dos seres criados

Revista Espírita, março de 1864

A questão dos animais pede alguns desenvolvimentos. Eles têm um princípio inteligente, isto é incontestável. De que natureza é esse princípio? Que relações tem com o do homem? É estacionário em cada espécie, ou progressivo passando de uma espécie à outra? Qual é para ele o limite do progresso? Caminha paralelamente ao homem, ou bem é o mesmo princípio que se elabora e ensaia a vida nas espécies inferiores, para receber mais tarde novas faculdades e sofrer a transformação humana? São tantas questões que ficaram insolúveis até este dia, e se o véu que cobre esse mistério não foi ainda levantado pelos Espíritos, é que isso teria sido prematuro: o homem não está ainda maduro para receber tanta luz. [16] 

            No ano seguinte, Kardec já publica alguns artigos sustentando a idéia da ligação entre a alma humana e a animal, além de indicar os motivos “para que tal hipótese ainda não tivesse sido apresentada como verdadeira.” [17] 

Manifestação do espírito dos animais

Revista Espírita, maio de 1865

Mas tudo não se detém em crer somente no progresso incessante do Espírito, embrião na matéria e se desenvolvendo ao passar pelo exame severo do mineral, do vegetal, do animal, para chegar à humanimalidade, onde somente começa a se ensaiar a alma que se encarnará, orgulhosa de sua tarefa, na humanidade. Existem entre essas diferentes fases laços importantes que é necessário conhecer e que eu chamarei períodos intermediários ou latentes; porque é aí que se operam as transformações sucessivas.

 

Alucinação nos animais

Revista Espírita, setembro de 1865

Essa questão toca preconceitos há muito tempo enraizados e que teria sido imprudente chocar de frente, e foi porque os Espíritos não o fizeram. A questão está iniciada hoje; ela se agita sobre pontos diferentes, mesmo fora do Espiritismo; os desencarnados nela tomam parte cada um segundo as suas idéias pessoais; ... sem adotar tal ou tal opinião, familiariza-se com a idéia de um ponto de contato entre a animalidade e a humanidade, e quando vier a solução definitiva, em qualquer sentido que ela ocorra, deverá se apoiar sobre os argumentos peremptórios que não deixarão nenhum lugar à dúvida; se a idéia é verdadeira, terá sido pressentida; se ela é falsa, é que se terá encontrado alguma coisa mais lógica para pôr no lugar. [18]

            Assim, mesmo nesta questão, pendendo para a possibilidade da ligação das almas dos homens e dos animais, Kardec não fecha a questão. Isso será demonstrado quando tratar da metempsicose, nos comentários finais do capítulo, onde ele aponta as duas hipóteses. Como vimos, Léon Denis concorda com a possibilidade. Herculano Pires, na obra citada, entende que “a teoria doutrinária da criação dos Seres (...) revela o processo evolutivo a partir do reino mineral até o reino hominal.” [19]   Bozzano acredita que

Uma das melhores definições compreensíveis sobre a natureza íntima dos processos evolutivos nas individualidades vivas foi ditada mediunicamente à lady Cathness, que a transcreve no seu livro Old truth in new light (Antiga verdade com nova luz). (...):

“O gás se mineraliza,

O mineral se vegetaliza,

O vegetal se humaniza,

O homem se diviniza.” [20] 

            Nesta questão, eu acompanho a preferência de Kardec (a ligação entre a alma dos animais e do homem), posicionamento compartilhado por Léon Denis, Ernesto Bozzano e Herculano Pires.

            Na questão 608, Kardec indaga se o Espírito do homem tem, após a morte, consciência de suas existências anteriores ao período de humanidade, ao que os Espíritos codificadores respondem que não, uma vez que não é nesse período que lhes começa a vida de Espírito (quando possuem consciência de si mesmos). Afirmam mesmo ser difícil o lembrar-se das primeiras encarnações humanas, à semelhança do que se passaria conosco com episódios de nossa infância mais tenra.

            Na pergunta 609 Kardec deseja saber se, uma vez na condição humana, o Espírito conserva traços do que era anteriormente, ou seja, do período que precede o da humanidade. Os Espíritos respondem-lhe que isso é “conforme a distância que medeie entre os dois períodos e o progresso realizado. Durante algumas gerações, pode ele conservar vestígios mais ou menos pronunciados do estado primitivo (...)” [21] Afirmam, ainda, que com o desenvolvimento do livre-arbítrio, estes vestígios vão desaparecendo. A resposta termina com uma importante reflexão, que nos pode servir diretamente, no entendimento de nossa atual condição evolutiva e dos esforços que devamos fazer para nos modificar para melhor. “Os primeiros progressos só muito lentamente se efetuam, porque ainda não tem a secundá-los a vontade. Vão em progressão mais rápida, à medida que o Espírito adquire mais perfeita consciência de si mesmo.” [22]  Os progressos iniciais se dão mais lentamente, na medida em que a vontade se torne mais firme, orientada. A consciência de si mesmo faz com que a criatura humana desenvolva-se mais depressa. Eis que, até no capítulo que trata dos animais, temos a questão da necessidade do autoconhecimento para nosso progresso. 

            Kardec conclui o tema indagando:

610. Ter-se-ão enganado os Espíritos que disseram constituir o homem um ser à parte na ordem da criação?

“Não, mas a questão não fora desenvolvida. Demais, há coisas que só a seu tempo podem ser esclarecidas. O homem é, com efeito, um ser à parte, visto possuir faculdades que o distinguem de todos os outros e ter outro destino. A espécie humana é a que Deus escolheu para a encarnação dos seres que podem conhecê-lo.” [23] 

            Não deixa de ser o homem, pelas capacidades que reúne em si, um ser à parte na criação. Somente que ele é “a parte” no momento atual. Anteriormente não era, quando nas fileiras dos princípios inteligentes que animavam corpos de animais. Na condição humana, pode vislumbrar o conhecimento de Deus.

            Eis que, ao final, divido com vocês, minha conclusão. Partindo do princípio de que o princípio inteligente passa por diferentes elaborações, por diferentes experiências, até atingir a condição humana e de acordo com o que é dito nas questões 591, cuja resposta nos informa que nos mundos superiores as plantas também são mais perfeitas, e na questão 601, onde os Espíritos nos informam que os animais, nos mundos superiores são mais adiantados, eu permito-me uma suposição. O princípio inteligente, migrando através da evolução espiritual de um reino para outro (do mineral para o vegetal, do vegetal para o animal e do animal para a humanidade) passa, neste processo, pelo menos três vezes por todas as escalas evolutivas dos mundos. Passa, na condição vegetal, dos mundos primitivos até os mundos mais altos, no grau da hierarquia. Quando tem que tornar-se animal, volta aos mundos primitivos e retoma, novamente, o trabalho, até atingir, ainda uma vez, os mundos superiores, o que se repete quando se torna ser humano e tem que encarnar naqueles mundos primitivos. Essa dedução poderia, muito bem, ter sido feita por Kardec, a partir das respostas que obteve. Como ele foi prudente na questão das relações existentes entre as almas dos animais e a dos homens (ainda que, no meu entender, simpatizasse mais com ela), pode não ter arriscado formulá-la. Eu divido-a a título de hipótese, sem, ainda, querer reivindicar-lhe a paternidade, pois nestas andanças de movimento espírita penso ter escutado algo parecido com isso, que a releitura de O Livro dos Espíritos acabou por me sugerir. Prudentemente, e seguindo a recomendação kardequiana de prudência, espero o desenvolvimento posterior do assunto.



[1] KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: FEB, 1996, p. 368.

[2] Os animais no mundo espiritual. Disponível em: https://www.ippb.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3892&catid=81 Último acesso em 19 de janeiro de 2011.

[3] PIRES, José Herculano. Mediunidade (Vida e Comunicação). São Paulo: EDICEL, 1984, p. 50. Disponível em: https://www.meiovirtual.net/cosmica/livros/herculano_pires/herculano_pires_mediunidade.pdf Último acesso em 19 de janeiro de 2011.

[4] BOZZANO, Ernesto. Os animais tem alma?, p. 105. Disponível em: https://www.aeradoespirito.net/Livros3/ErnestoBozzanoOsAnimaistemAlma.pdf Último acesso em 20 de janeiro de 2011.

 

[5] Idem, p. 150-151.

[6] KARDEC, Allan. “Perguntas e Problemas. Manifestações do Espírito dos animais.” Revista Espírita. Paris, maio de 1865, nº5, p. 2.

[7] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 1995, p. 293.

[8] DENIS, Léon. O Problema do Ser, do Destino e da Dor. Rio de Janeiro: FEB, 1999, p.381.

[9] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Op. cit., p. 297.

[10] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Op. cit., p. 298.

[11] Idem.

[12] Da luta Interior à paz da vida nova. Disponível em: https://www.agostinianos.org.br/visualizacao_de_cursos/pt-br/ver_noticia/54 Último acesso em 20 de janeiro de 2011.

[13] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Op. cit., p. 299 - 300.

[14] Denis, Léon. Op. cit, p. 123.

[15] CRUVINEL, Vital. “Tudo se encadeia mais ainda.” Disponível em: https://decodificando-livro-espiritos.blogspot.com/2009/03/tudo-se-encadeia-mais-ainda.html#more Último acesso em 20 de janeiro de 2011.

[16] Idem.

[17] Idem.

[18] Idem.

[19] PÍRES, José Herculano. Op. cit., p. 48.

[20] BOZZANO, Ernesto. Op. cit., p. 154 - 155.

[21] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Op. cit., p. 301.

[22] Idem.

[23] Idem.

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Natal

03/12/2010 18:54

            Em 1914 inicia-se a Primeira Guerra Mundial. Os cenários, dos campos de batalha, lembravam o solo lunar, castigado belos explosivos. Além disso, centenas de cadáveres permaneciam, muitas vezes, insepultos e, portanto, em estado de putrefação, o que tornava o ar irrespirável. As trincheiras, cavadas no chão, abrigavam aqueles combatentes do fogo adversário. Avançar posições era quase tarefa suicida. Levantar, distraidamente, poderia ser fatal. Alguns atiradores falavam que davam um “beijo de boa noite” nos adversários quando eles cometiam este descuido. A Europa fica arrasada, pela destruição material provocada, mas principalmente pela destruição moral, na saudade daqueles que deixaram o corpo físico vitimados pela violência dos campos de batalha. As estimativas do número de mortos ficam na casa dos milhões, variando de acordo com os estudiosos. Existe, no entanto, uma peculiaridade nesta guerra que gostaria de tratar: a trégua de Natal, que começou na véspera, ou no próprio dia de Natal, se estendendo por alguns dias. Em uma parte da frente de lutas, durou até março de 1915. Ela foi totalmente não-oficial e sem qualquer acordo prévio, um gesto espontâneo de boa vontade dos soldados que, até, contrariava a ordem de seus superiores hierárquicos.

            Os conhecimentos que se tem a respeito do assunto são limitados às declarações dadas por testemunhas oculares. Na época, foi muito divulgada na Inglaterra e pouco menos na Alemanha. O governo britânico afirmava que se tratava de episódios isolados, ao passo que os da Alemanha e da França afirmavam que não havia acontecido, a despeito dos relatos de suas tropas.

            A maioria dos relatos é de encontros entre alemães e britânicos. Com os franceses foi mais difícil, uma vez que o país deles encontrava-se, então ocupado.

Em alguns pontos da frente, as tropas ouviam os soldados inimigos cantando cânticos de Natal e então começavam a “retaliar”, cantando também. Em outras ocasiões, gritos de “A Happy Christmas to you Englishmen!” eram abertamente lançados para as trincheiras britânicas, sendo cortesmente retribuídos. [1]

            Um correspondente de um jornal britânico (Daily Telegraph) escreveu que, em determinada parte da frente de combate, os alemães conseguiram passar um pedaço de bolo de chocolate para as trincheiras britânicas.

Junto do bolo veio uma carta pedindo o cessar-fogo para aquela noite, para que eles pudessem comemorar a ocasião e o aniversário do seu capitão. Os britânicos concordaram e enviaram tabaco como presente. Às 19:30 h, os soldados alemães se ergueram de sua trincheira e começaram a entoar cânticos, com cada canção recebendo aplausos de ambos os lados. Os alemães então conclamaram os britânicos a cantar também, mas um inglês ainda um tanto belicoso gritou: “Preferimos morrer a cantar, alemão!”, ao que um bem-humorado germânico respondeu: “Vocês podem nos matar se cantarem!” [2]

            Existem narrativas de que, soldados que na vida civil eram barbeiros, cortavam os cabelos dos soldados adversários. Conta-se, também, que num certo local um mágico, com auxiliares de ambas as nacionalidades, fazia seus números na “terra de ninguém”, onde se desenrolavam os combates. Existem referências de uma ceia de Natal, onde alemães e britânicos compartilharam um leitão assado. Menciona-se, até, que trocavam ferramentas entre si, a fim de repararem suas cercas de arame, das trincheiras!

            Graham Williams, soldado inglês, escreveu para sua irmã algumas conversas que teve com os alemães, nesta ocasião:

Ele me disse que tinha uma namorada em Londres e que a guerra havia interrompido seus planos de casamento. Eu lhe disse: ‘Não se preocupe. Nós derrotaremos vocês até a Páscoa e então você poderá voltar e casar com a garota’. Ele riu e então me perguntou se eu poderia mandar um cartão postal para ela e eu prometi que o faria.

Outro alemão (...) me mostrou uma foto de sua família em Munique. Sua irmã mais velha era linda e eu disse que poderia me encontrar com ela algum dia. Ele sorriu, disse que gostaria muito disso e deu-me o endereço de sua família.

Mesmo os que não conseguiam conversar podiam ainda trocar presentes - nossos cigarros pelos deles, nosso chá pelo seu café, nossa carne pela sua salsicha. Brasões de unidade e botões de uniforme eram trocados como souvenires (...) [3]

            Um dos episódios mais interessantes nestas tréguas eram as partidas de futebol, jogadas na “terra de ninguém”. Uma dessas partidas, onde os alemães ganharam por 3 a 2 foi interrompida por conta das ordens de um oficial superior alemão ficou sabendo e mandou interromper. Em uma ocasião, a partida terminou porque a bola bateu num obstáculo de arame farpado.

            A necessidade de enterrar os mortos que estavam na “terra de ninguém” era outra motivação para as tréguas. Conta-se que em certo ponto da frente de combates, soldados de ambos os lados realizaram serviços fúnebres em conjunto, com todos lendo juntos o salmo 23: “O Senhor é meu pastor, nada me faltará...”

            As tréguas geralmente terminavam da maneira que começavam. Por acordo mútuo. O Capitão Stockwell, do Royal Welsh Fusiliers contou assim o final de uma delas:

Às 8:30 h do dia 26, eu disparei três tiros para o ar, ergui uma bandeira com os dizeres “Merry Christmas” e subi da trincheira. Os alemães levantaram uma placa com os dizeres “Thank you” e o capitão deles apareceu no alto da trincheira. Nós nos saudamos e retornamos às nossas trincheiras. Em seguida, ele fez dois disparos para o ar. A guerra havia começado novamente. [4]

            O jovem soldado que escreveu para sua irmã guardou impressão interessante do encontro.

(...) depois de conhecer estes homens, me espanto em como nossos jornais haviam sido desonestos. Eles não eram os ‘bárbaros selvagens’ que nós havíamos lido tanto. Eles eram homens com casas e famílias, esperanças e medos, princípios e, sim, amor pelo seu país. Em outras palavras, homens como nós. (...)

Eu estava começando a voltar para a minha trincheira quando um alemão mais velho segurou meu braço e me disse: ‘Meu Deus! Por que não podemos ter paz para todos nós voltarmos para casa?’ Eu respondi: ‘Você tem que perguntar isso ao seu imperador’. Ele olhou para mim sério e disse: ‘Talvez, meu amigo. Mas também temos que perguntar aos nossos corações’. [5]

            Que data misteriosa e profunda essa! Como nos toca as fibras mais íntimas do coração! Que poder tem esse Homem, nascido numa manjedoura simples, entre animais e o povo! É ponto pacífico que muitos de nós entendemos esta data como sendo a oportunidade de trocar presentes. O comércio adora isso! “Já é Natal na Leader Magazine”, ouvimos isso, muitas vezes já no mês de Novembro! A mídia, de maneira geral, massifica a informação de que as pessoas estão comprando nas lojas de rua, nos shoppings, nos grandes centros comerciais. Crianças são entrevistadas, junto com seus pais, onde dizem o que esperam ganhar do Papai Noel, figura, para alguns mais velhos simpática. Quando eu era criança, tinha medo daquele homem enorme, vestido de vermelho, com um saco nas costas, com aquela barba desproporcional. Muita criança tem medo dele, como eu tinha. Agora, pode ser uma excelente opção de ganhos extras no fim do ano para aqueles senhores de mais de 50 anos, barbudos e um pouco acima do peso. Deve ser terrível suportar aquela roupa quentíssima. Aliás, este é outro aspecto de nosso Natal. Incorporamos elementos de outras culturas de maneira muito natural. As roupas de Papai Noel, as comidas e as bebidas que costumam vender nestas ocasiões são de clima frio, nada que se compare ao escaldante verão carioca. Mas o Natal não é dos convencionalismos. É de Jesus.

            Dessa maneira, entendo que, ao realizarmos enormes banquetes, onde a comilança predomina, aliada, muitas vezes, à bebedeira convencionalmente aceita (cerveja e vinho, para não falar dos destilados), estamos fugindo ao propósito mais elevado da comemoração - o nascimento de Jesus. Ele, que nasceu pobre, filho de pobres que não conseguiram um local para se hospedar na noite em que ele nasceu. Eis que, dentre os animais, no meio da gente simples do povo, Ele começa a sua missão. E quantos padecem privações, nesta data! As nossas mesas desperdiçando, muitos estômagos famintos... Muito luxo para rememorar o nascimento de um pobre que andou acompanhado de outros pobres. O nascimento de alguém que, hoje, seria considerado um excluído, no mundo. Será que haveria lugar para Jesus nascer no nosso mundo de hoje? Fica para refletir. Irmão X, numa bela mensagem do livro “Antologia Mediúnica do Natal” aponta, com muita sabedoria:

Quem sabe, Senhor, poderias voltar, consolidando a tua glória, como fizeste há quase vinte séculos?! Entretanto, não nos atrevemos ao convite direto. As estalagens do mundo estão ainda repletas de gente negociando bens transitórios e melhorando o inventário das posses exteriores. (...) Quase certo que não encontrarias lugar entre as criaturas. (...) que adiantaria o teu retorno se a estatística das coisas santas não oferece a menor garantia de vitória próxima? Como insistir pela tua volta pessoal e direta se na esfera dos homens ainda não tens lugar onde possas nascer, trabalhar e morrer?[6]

            Devo registrar que não sou contra, nem estou fazendo qualquer pregação contra a atitude de confraternizar. É uma prática sumamente saudável, que dá conta dos sentimentos de amizade, estima e afeto que sentimos pelas pessoas. Penso que muito do que vemos, nesta ocasião próxima ao Natal, se deve às influências de Jesus na nossa vida social. Penso que, apesar de todas as ressalvas que possamos levantar a respeito da atitude de muita gente sobre o Natal, existe, da parte da maioria das pessoas, muito boa vontade nesta época. Boa parte de nós procuramos reunirmo-nos com nossos amigos, conversarmos. O que chamo a atenção, de maneira negativa, é para a atitude com relação aos excessos, ao desperdício que muitas vezes acontece nestes dias. Comida para um batalhão, numa família de três, quatro pessoas. Bebedeira desenfreada, com episódios desagradáveis que o álcool provoca. Estou certo de que isso foge ao objetivo da data.

            Ainda no livro que citamos, encontramos uma história do Espírito Néio Lúcio que vai de encontro com o que dissemos a respeito da comilança. Um peru que, após conviver largo tempo numa família que possuía vastos conhecimentos evangélicos, aprendeu a transmitir os ensinamentos de Jesus aos outros animais, guardando, igualmente, fé nas promessas Dele.

O peru, muito confiante, assegurava que Jesus Cristo era o Salvador do Mundo, que viera alumiar o caminho de todos e que, por base de sua doutrina, colocara o amor das criaturas umas para com as outras, garantindo a fórmula de verdadeira felicidade na Terra. Dizia que todos os seres, para viverem tranqüilos e contentes, deveriam perdoar aos inimigos, desculpar os transviados e socorre-los.

As aves passaram a venerar o Evangelho; todavia, chegado o Natal do Mestre Divino, eis que alguns homens vieram aos lagos, galinheiros, currais e, depois de se referirem excessivamente ao amor que dedicavam a Jesus, laçaram frangos, patinhos e perus, matando-os ali mesmo, ante o assombro geral.[7]

            Evidente que houve lamentações e, aflitas, as aves rodearam o pregador e crivaram-no de perguntas dolorosas. “Como louvar um Senhor que aceitava tantas manifestações de sangue na festa do natalício? Como explicar tanta maldade por parte dos homens que se declaravam cristãos e operavam tanta matança?”[8] O pastor prometeu responder no dia seguinte, porque também achava-se cansado e oprimido, uma vez que sua esposa também fora vítima. Assim, na manhã de Natal, esclareceu a seus companheiros que a ordem de matar não partira de Jesus, que preferiu a morte a ter que justiçar e que deviam, por isso, continuar amando o Senhor e servindo-o, não sem esquecer da recomendação de perdoar setenta vezes sete vezes. Comparou estes homens aos falsos profetas, vestidos de ovelha, mas na verdade agindo como lobos devoradores e, por fim, recordou-lhes as bem-aventuranças prometidas àqueles que sofrem. Assim, confortadas, “as aves se recordaram de que o próprio Senhor, para alcançar a Ressurreição Gloriosa, aceitara a morte de sacrifício igual à delas.” [9] Dessa maneira, que verifiquemos o que está sendo mais importante na comemoração da data, a lembrança do nascimento Dele ou a comilança nervosa.

            Eis que se encontra outra imprecisão: quando, afinal de contas, Jesus nasceu? Terá sido mesmo no dia assinalado de nossa comemoração? O dia 25 de dezembro foi escolhido no século IV, coincidindo com o Solstício de Inverno (quando o hemisfério norte do planeta recebe menos sol) que era comemorado pelos romanos como o “Dia do Sol Invencível”, uma data onde o Sol era venerado. Mas dificilmente Jesus teria nascido nesta época. Era inverno e na região que hoje é o Estado de Israel, a estação era muito intensa. Alguém refugiado numa estrebaria, uma criança principalmente, não conseguiria sobreviver às baixas temperaturas. Além disso, o relato evangélico dá conta da presença de pastores que fazem a visita ao recém nascido, que não ficavam nos campos durante esta estação do ano. Já tive contato com algumas opiniões que dão conta de que o nascimento teria ocorrido entre os meses de abril e maio.

            Um autor pouco comentando entre os espíritas de hoje, porém, de artigos muito interessantes e profundos, chamado Pedro de Camargo, que utilizava o pseudônimo “Vinícius” tem reflexões bem oportunas sobre o Natal, que quero dividir com todos. “Eis que vos trago uma boa nova de grande alegria: na cidade de David acaba de vos nascer, hoje, o Salvador, que é Cristo, Senhor... Glória a Deus nas alturas, paz na Terra aos homens de boa vontade.”[10] Chama atenção para o “vos nascer”! Nasceu para mim. Um acontecimento de natureza particular. Para o autor, a obra do nazareno só tem valor fundamental quando individualizada. Vinícius entende que “a redenção, que é obra de educação, tem que partir da parte para o todo, do indivíduo para a coletividade, e não desta para aquele. A transformação social há de ser a soma das transformações pessoais. Por isso, cumpre individuar o Natal (...)”[11] Afirma o autor que o nosso momento é pessoal e específico. Enquanto esperarmos que o ambiente em torno de nós se modifique e nos proporcione condições de mudarmos a nossa realidade espiritual, perderemos tempo. O dia de iniciarmos a nossa obra pessoal de redenção é hoje, está no presente. Penso que é a hora que nos damos conta da necessidade de fazê-lo. Quando tomamos consciência de que a vida que levamos não nos serve mais, não nos preenche mais, eis que é chegado o momento de empreendermos os esforços necessários para a mudança. Allan Kardec, em O Livro dos Espíritos, em sua segunda parte, indaga aos benfeitores espirituais:

Em que consiste a missão dos Espíritos encarnados?

“Em instruir os homens, em lhes auxiliar o progresso; em lhes melhorar as instituições, por meios diretos e materiais. As missões, porém, são mais ou menos gerais e importantes. O que cultiva a terra desempenha tão nobre missão, como o que governa, ou o que instrui. Tudo em a Natureza se encadeia. Ao mesmo tempo que o Espírito se depura pela encarnação, concorre, dessa forma, para a execução dos desígnios da Providência. Cada um tem neste mundo a sua missão, porque todos podem ter alguma utilidade.” [12]

            Chama-nos a atenção, assim, para a responsabilidade que nos cabe na transformação social. “Instruir os homens, auxiliar-lhes o progresso, melhorar-lhes as instituições” são tarefas que nos competem enquanto encarnados. Assim, não esperemos as condições materiais adequadas para o início de nossas atividades no bem. Criemos as situações onde possamos ser úteis. Quando o servidor encontra-se preparado, o serviço aparece. Vinícius continua em suas reflexões. O Natal, portanto, que nos deve interessar, é o que se dará em nós, pela nossa vontade.  “Só sabemos das coisas de Jesus por experiência própria. Só após ele haver nascido em nosso coração, é que chegamos a entendê-lo, assimilando, em espírito e verdade, o seu Verbo incomparável.”[13]  Em outra obra, do mesmo autor, intitulada “Em Torno do Mestre”, ele nos propõe algumas reflexões quanto ao papel de Jesus nas nossas vidas:

Que influência está exercendo em nós o seu nascimento? Que relação existe entre o natal de Jesus e a nossa vida no momento atual? Que veio Jesus fazer à Terra, na parte que nos toca? (...) Se o nascimento do Redentor não é ainda uma realidade em nós mesmos, influindo positivamente em nosso caráter, que importância pode ter no que nos diz respeito? [14]

            O nascimento do Jesus histórico, em última análise, não nos afeta pessoalmente. Só tem valor se tem relação conosco. Se isso representa, para nós, uma força capaz de modificar-nos as estruturas íntimas, como uma força viva atuando em nosso Espírito, então Jesus, efetivamente, nasceu para nós. Vinícius, ainda, nos brinda com uma página repleta de sensibilidade: “Cristo nasceu? Onde? Quando?” Para Paulo de Tarso, Jesus nasceu quando ele, intolerante e fanatizado por uma causa inglória, se viu envolvido naquela luz poderosa. “Dali por diante - ‘Já não sou eu mais quem vive, mas o Cristo é que vive em mim’.”[15] Para o apóstolo Pedro, Jesus nasceu no pátio do palácio de Pilatos quando o galo cantou, após ele ter negado o Mestre por três vezes. Dali por diante, não o vemos mais vacilante, como antes. Para Zaqueu, Jesus teria nascido em Jericó, quando ele estava em cima de uma árvore para o ver passar de longe e Ele o chamou, a fim de se hospedar em seu lar. Naquele dia a salvação entrou na sua casa. Para Dimas, Jesus teria nascido no topo do Calvário, quando a maldade humana julgava ter aniquilado Ele para sempre. Dali, Jesus dirigiu-lhe um olhar repleto de ternura e piedade (que nós não costumamos voltar aos criminosos), que lhe fez esquecer todas as amarguras deste mundo. Estes corações, dos exemplos utilizados por Vinícius, deixaram de ser como as hospedarias de Belém e acolheram Jesus, transformando-se numa manjedoura. Quando Jesus nasceu para nós? Como fazer com que Ele nasça em nossos corações? Vamos aproveitar o clima de fraternidade do momento em que vivemos. No Natal, Jesus está mais próximo da Terra, e no dia, na passagem, segundo Francisco Cândido Xavier, presente algumas horas, socorrendo os infelizes, ao lado daqueles que são os “mais pobres, humildes e perdidos.” [16] Aproveitar e fazer como aqueles soldados alemães e britânicos da Primeira Guerra Mundial que tentaram superar suas rivalidades, suas inferioridades, em nome do espírito de fraternidade que será o cimento das relações humanas. Tentar, um momento que seja. Para aqueles homens da guerra estou seguro que a experiência vivida foi marcante, ainda que eles tenham recomeçado os combates. Mas foram marcados por Jesus. Experienciaram que outro tipo de relações entre os seres é possível. Vamos, sim, tentarmos as pequenas realizações, os pequenos gestos, as pequenas atitudes na direção da fraternidade humana. Vamos dar algo de nós, muito além do dinheiro que tenhamos (ou não). Vamos dar atenção às pessoas. Muita gente tem fome de pão, mas existe muita fome de afeto, como diz Tereza de Calcutá. Meimei nos sugere:

Não importa se diga que cultivas a bondade somente hoje quando o Natal te deslumbra!... Comecemos a viver com Jesus, ainda que seja por algumas horas, de quando em quando, e aprenderemos, pouco a pouco, a estar com ele, em todos os instantes, tanto quanto ele permanece conosco, tornando diariamente ao nosso convívio e sustentando-nos para sempre. [17]

            Vamos, portanto, nos aclimatando ao bem. Adestrando-nos nele, a fim de que, aos poucos, deixemos de lado nossa bagagem ruim e formemos, em nós um patrimônio importante de boas realizações na Seara de Jesus. Assim, Jesus nascerá para nós e assim teremos um verdadeiro Natal cristão.



[1] THEODORO, Reinaldo V. A Trégua de Natal. Disponível em: https://www.clubesomnium.org/arquivos/militaria/historia/Tregua_de_Natal.pdf Última consulta em 3 de dezembro de 2010.

[2] Idem, p. 2.

[3] Idem, p. 3.

[4] Idem, p. 6.

[5] Idem, p. 4.

[6] XAVIER, Francisco Cândido. Antologia Mediúnica do Natal. FEB, Rio de Janeiro, 1998, p. 35 - 36.

[7] Idem, p. 105.

[8] Idem.

[9] Idem, p. 106.

[10] VINÍCIUS. Na Seara do Mestre. FEB, Rio de Janeiro, 1951, p. 24.

[11] Idem, p. 25.

[12] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. FEB, Rio de Janeiro, 1995, p. 285.

[13] VINÍCIUS. Na Seara do Mestre. FEB, Rio de Janeiro, 1951, p. 28.

[14] VINÍCIUS. Em Torno do Mestre. FEB, Rio de Janeiro, 1939, p. 189.

[15] Idem, p. 190.

[16] Aqui é o estrado para teus pés,

Que repousam aqui, onde vivem os mais pobres

Mais humildes e perdidos.

Quando tento inclinar-me diante de ti,

A minha reverencia não consegue alcançar

A profundidade onde teus pés repousavam,

Entre os mais pobres, mais humildes e perdidos.

O orgulho nunca pode aproximar-se desse lugar

Onde caminhas com a roupa do miserável

Entre os mais pobres humildes e perdidos.

O meu coração jamais pode encontrar

O caminho onde fazes companhia ao que não tem companheiro,

Entre os mais pobres, humildes e pedidos.

TAGORE, Rabindranath. Poema. Disponível em: https://www.peregrinosdapaz.ufpa.br/pensadores/poema07.pdf Última pesquisa em 3 de dezembro de 2010.

 

[17] XAVIER. Francisco Cândido. Op. cit., p. 25.

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Das Ocupações e Missões dos Espíritos – O Livro dos Espíritos, perguntas 567 a 575. Rio de Janeiro, 16 de Novembro de 2010.

17/11/2010 18:45

O Espírito André Luiz encontrava-se, segundo seu relato, numa região espiritual inferior em companhia do instrutor Gúbio e de Elói. Ao aproximar-se da janela do local onde estavam alojados, observou o que se desenrolava na via pública.

Os diálogos e entendimentos surpreendiam. Quase todos se referiam à esfera carnal.

Questões minunciosas e pequeninas da vida particular eram analisadas com inequívoco interesse; contudo, as notas dominantes caíam no desequilíbrio sentimental e nas emoções primárias da experiência física.[1]

            Na questão 567 de O Livro dos Espíritos, Kardec indaga se costumam os Espíritos imiscuir-se em nossos prazeres e ocupações, ao que os Espíritos da Codificação respondem: “Os Espíritos vulgares, como dizes, costumam. Esses vos rodeiam constantemente e com freqüência tomam parte muito ativa no que fazeis, de conformidade com suas naturezas. (...)” [2] Kardec, em seus comentários posteriores, acrescenta que os Espíritos se ocupam com as coisas deste mundo de conformidade com seu estágio evolutivo em que se achem. Os Espíritos Superiores podem analisá-las em suas particularidades na medida em que isso sirva ao progresso. Somente os Espíritos Inferiores “ligam a essas coisas uma importância relativa às reminiscências que ainda conservam e às idéias materiais que ainda não se extinguiram neles.” [3]

            Morrer é fenômeno biológico. Desencarnar é fenômeno psicológico. Podemos ir, aos poucos, em vida na carne, desencarnando, quando, através de nossos esforços, nos acostumamos com a realidade de sermos Espíritos Imortais, quando, portanto, colocamos o interesse da construção do Reino de Deus em nós acima dos interesses materiais exagerados pelo nosso egoísmo. Morrer sem desencarnar traz dificuldades aos Espíritos. A órbita de seus interesses permanecerá sendo a vida material e todas as suas peculiaridades. Os avarentos se preocuparão com seus bens, o vaidoso com sua beleza ou fama, os viciados com o atendimento de seus vícios, os promotores da guerra se preocuparão com o estímulo à violência... A fronteira da morte não descaracteriza o sujeito. Acorda como viveu, sendo exatamente quem é depois do transe biológico. Quem em vida acostumou-se a determinado clima mental, circulará no ambiente que criou para si mesmo. André Luiz, no livro “Libertação”, nos chama a atenção para um dos centros de interesse dos Espíritos congregados àquela região de sofrimentos. “Desequilíbrios sentimentais”, o que me fez lembrar as novelas que costumamos acompanhar pela TV. Qual a nota preponderante delas? As questões amorosas, nem sempre saudáveis do ponto de vista moral e, por isso, psicológico. Trocas de casais, traições, tentativas de conquistas amorosas a todo custo... As novelas me parecem, neste aspecto, muito mal inspiradas... De onde será que os autores retiram essas idéias ou melhor, com quem eles compartilham a autoria da trama? As relações humanas, no campo do sentimento são, em última análise, banalizadas, como se trocar de par fosse como trocar de chinelos, esquecendo-se que estamos tratando com seres humanos que merecem ser tratados com dignidade humana e não como objetos. Os Espíritos inferiores, portanto, onde estejam, ao nosso lado, ou nos locais onde se reúnem, estão com a cabeça aqui, no mundo material, porque não “desencarnaram”, não libertaram-se das preocupações relativas a vida material. Já os Espíritos Superiores, ou aqueles bem intencionados, observam essas particularidades com o objetivo de promoverem o progresso. Estudam essas situações, compartilham, nos ambientes de reuniões mediúnicas, com os encarnados, essas vivências, preparam trabalhadores no mundo espiritual para atuarem no auxílio a essas entidades em dificuldades. O que são as obras de André Luiz senão um estudo permanente dos aspectos da realidade do mundo espiritual próximo à Terra?

            Em “Nos Domínios da Mediunidade”, no capítulo “Forças Viciadas”, relata-nos algumas observações quando dirigia-se a uma instituição espírita.

Dois guardas arrastavam, de restaurante barato, um homem maduro em deploráveis condições de embriaguez.

O mísero esperneava e proferia palavras rudes, protestando, protestando...

- Observem o nosso infeliz irmão! – determinou o orientador. (...)

Achava-se o pobre amigo abraçado por uma entidade da sombra, qual se um polvo estranho o absorvesse.

Num átimo, reparamos que a bebedeira alcançava os dois, porquanto se justapunham completamente um ao outro, exibindo as mesmas perturbações.[4]

            O instrutor Áulus convida André Luiz e Hilário, que os acompanhava, a entrarem no ambiente. Relata-nos o autor espiritual que os Espíritos ali presentes sorviam as baforadas de cigarro arremessadas ao ar, ainda aquecidas pelos pulmões dos fumantes encarnados, encontrando nisso alegria e alimento. Outras aspiravam o hálito de alcoólatras impenitentes. Ainda naquele local, em outro ambiente, havia um homem jovem, numa mesa com conhaque, que fumava demais, acompanhado de uma entidade de aspecto ruim. O homem escrevia... Das mãos da entidade, localizada na cabeça do encarnado, escorriam substâncias escuras e pastosas. Eram co-autores daquilo que o encarnado escrevia. Desejava o rapaz, dado à malícia, a respeito de suposta participação de uma jovem num crime. A entidade desencarnada objetivava deprimir a vida moral da moça, a fim de trazê-la para o ambiente viciado em que se encontrava. Um homem dado a malícia encontrou o parceiro que procurava no mundo espiritual. O desencarnado, querendo fazer sofrer uma pessoa, encontra nele veículo de suas possibilidades. Certamente são parceiros, a moça e o desencarnado, de vivências passadas, até nas regiões inferiores do mundo espiritual. Reencontrando-a encarnada, bênção de que ainda não dispõe, procura arrastá-la para a desordem emocional, onde encontraria clima para vampirizar-lhe as energias.

Eis a importância, para nós, de uma conduta reta, pautada no bem. Mostramos aos desencarnados que nos acompanharam nos banquetes do mal no passado que estamos procurando ser diferentes, com atitudes renovadas no bem. Evidentemente que lhes sofremos as influenciações, mas à medida que consolidemo-nos no bem, notarão que estamos transformados. Podem seguir-nos na renovação, o que para nós seria excelente, por conquistarmos alguém pelo exemplo, ou simplesmente afastarem-se de nós, que não mais lhes compartilhamos o modo de encarar a vida.

Eis que, ao saírem do ambiente onde encontrava-se o jornalista comprometido com a malícia, na via pública novamente, André Luiz e seus companheiros vêem passar uma ambulância. À frente, no lado do motorista, um homem de cabelos grisalhos, simpático e preocupado. Junto dele, abraçando-o com naturalidade e doçura, uma entidade em roupagem lirial lhe envolvia a cabeça em vibrações suaves e calmantes de prateada luz. Um médico em alguma tarefa de socorro.

Deve ser, antes de tudo, um profissional humanitário e generoso que por seus hábitos de ajudar ao próximo se fez credor do auxílio que recebe. (...) Para acomodar-se tão harmoniosamente com a entidade que o assiste, precisa possuir uma boa consciência e um coração que irradie paz e fraternidade.[5]

            Eis que, neste caso, temos uma entidade com relativa evolução ocupada com as questões da vida material, no que diz respeito ao auxílio aos doentes, acompanhando um homem que se credenciou à sua companhia, pelas atitudes nobres que assumiu diante da vida.

            Na questão 568, Kardec indaga se os Espíritos, que tem missão a cumprir, o fazem na erraticidade ou encarnados e os Espíritos respondem-lhe que podem ter em ambos os estados. Na 569, desenvolvendo a anterior, pergunta: “Em que consistem as missões de que podem ser encarregados os Espíritos errantes?” Obtendo, como resposta dos Espíritos: “São tão variadas que impossível fora descrevê-las. Muitas há mesmo que não podeis compreender. Os Espíritos executam as vontades de Deus e não vos é dado penetrar-lhe todos os desígnios.” [6]

            Kardec assinala, nas suas observações, que as missões dos Espíritos tem sempre por objeto o bem. São incumbidos de

auxiliar o progresso da Humanidade, dos povos ou dos indivíduos (...) e de velar pela execução de determinadas coisas. Alguns desempenham missões mais restritas e, de certo modo, pessoais ou inteiramente locais (...) há tantos gêneros de missões quantas as espécies de interesses a resguardar (...). [7]

            As obras do Espírito André Luiz são repletas de situações deste gênero, onde os Espíritos desempenham variadas missões, de acordo com os interesses com os quais se identificam. Penso que àqueles ligados, na Terra, às profissões relacionadas à educação, desde que se identifiquem com esta, buscarão, no mundo espiritual, desempenhar tarefas relacionadas ao esclarecimento das criaturas. Aqueles voltados à área médica podem dirigir seus esforços para o atendimento da saúde humana, ou mesmo o reequilíbrio do Espírito, naquilo que diz respeito ao perispírito, que deve ser objeto de estudos no mundo espiritual. Podem, por fim, desempenhar tarefa que lhes seja “estranha” quando encarnados, num esforço por recomeçar nas atitudes do bem que não escolhe, necessariamente, um campo específico, mas que aproveita as oportunidades de trabalho que a vida, no mundo espiritual lhe oferece. Evidentemente que, com o tempo, direcionará seus esforços para aquilo com que se identifique mais, desenvolvendo-se neste campo. Em “Missionários da Luz”, no capítulo “Socorro espiritual”, André Luiz conta-nos o caso de uma senhora desencarnada que buscou auxílio para que seu filho, moribundo, pudesse permanecer mais algum tempo encarnado, a fim de solucionar problemas que ainda lhe estavam pendentes na vida material.

            Com a saúde fragilizada, recolheu-se ao leito de sono com preocupações e angústias tais que suas criações mentais se tornaram, para ele, em verdadeira tortura. A mãe notou que corria risco de derrame cerebral. André Luiz assinala que o sujeito, espiritualmente, movimentava-se com dificuldades junto ao corpo, quase que completamente exteriorizada. O instrutor espiritual Alexandre toca-lhe o cérebro perispiritual e pede-lhe que se mantenha vigilante, sugerindo-lhe que deseje retomar o corpo. A seguir, aplicou-lhe passes no corpo material. Depois disso, convocou, mentalmente, o grupo de serviço do irmão Francisco. Concentrou-se e eis que um minuto depois chega ao local onde se encontravam oito entidades. Alexandre solicitou-lhes que trouxessem algum encarnado desdobrado pelo sono, a fim de lhes aproveitar as energias para o homem em risco de desencarnação. Enquanto o chefe da caravana retirou-se para buscá-lo, os demais permaneceram em auxílio magnético através da prece. Eis como Alexandre apresenta o grupo recém chegado:

Temos aqui o grupo do irmão Francisco. Trata-se de uma das inumeráveis turmas de serviço que nos prestam cooperação. Muitos companheiros consagram-se aos trabalhos dessa natureza, mormente à noite, quando as nossas atividades de auxílio podem ser mais intensas. [8]

            Assim que o encarnado que fora buscado pelo irmão Francisco chegou, Alexandre solicitou-lhe que colocasse suas mãos na cabeça do corpo do moribundo. Depois disso, esforçou-se por transferir energias do doador desdobrado pelo sono ao enfermo. À medida que o instrutor movimentava suas mãos no cérebro do doente, notava-se que melhorava. Sua forma perispiritual reunia-se devagarinho ao corpo, integrando-se uma com a outra, como se estivessem em reajustamento célula por célula. O encarnado ganhou uma moratória de cinco meses no máximo, devendo vigiar os pensamentos para que não lhe afetasse a estrutura orgânica. André Luiz conversa, depois do ocorrido, com o irmão Francisco, que o esclarece.

Nossa pequena expedição (...) é uma das inumeráveis turmas de socorro que colaboram nos círculos da Crosta. Somos milhares de servidores, nessas condições, ligados a diversas regiões espirituais mais elevadas. (...) O nosso (grupo) destina-se ao reconforto de doentes graves e agonizantes. (...) Quase ninguém no círculo de nossos irmãos encarnados conhece a extensão de nossas tarefas de socorro. (...) São muitos os irmãos afins (...) que se reúnem, depois da morte do corpo, em tarefas de amparo fraternal, quando já alcançaram os primeiros degraus da escada de purificação. (...) sabemos que, muitas vezes, é possível efetuar realizações deveras sublimes, de natureza espiritual, em poucos dias, nessas circunstâncias, depois de largos anos de atividades inúteis. No leito da morte, as criaturas são mais humanas e mais dóceis. Dir-se-ia que a moléstia intransigente enfraquece os instintos mais baixos, atenua as labaredas mais vivas das paixões inferiores, desanimaliza a alma. (...) Nunca observou a paciência inesperada de doentes graves, a calma de certos enfermos incuráveis e a suprema conformação da maioria dos moribundos? Muitas vezes, semelhantes edificações, incompreensíveis para os encarnados que os cercam, constituem o fruto do esforço de nossos grupos itinerantes de socorro. [9]

            Na pergunta 570, Kardec pergunta se “os Espíritos percebem sempre os desígnios que lhes competem desempenhar”, ao que os Espíritos Superiores lhe respondem que não, uma vez que muitos existem que podem ser instrumentos cegos, havendo, claro, outros que sabem com que objetivo atuam. Parece-nos estranho que alguns realizem atividades sem consciência do que estejam fazendo. Ainda em “O Livro dos Espíritos” existe um item intitulado “Ação dos Espíritos nos fenômenos da natureza”, onde verificamos que eles tem papel ativo nos fenômenos naturais. De acordo com a tarefa que desempenhem, podem ser de ordem mais elevada ou não. As tarefas mais “materiais” estão a cargo dos Espíritos mais materializados, ao passo que as atividades de comando são exercidas por entidades mais elevadas. Na pergunta 540 do livro que analisamos, Kardec deseja saber se estes Espíritos, que lidam com os fenômenos da natureza, operam com conhecimento de causa, usando o livre-arbítrio, ou apenas por efeito de instintivo impulso. Obtém resposta semelhante, ou seja, uns operam com conhecimento daquilo que fazem, outros não. Divaldo Franco, numa entrevista que concedeu à Revista Espírita Allan Kardec identifica-os como os elementais, das tradições exotéricas e espiritualistas.

            Na pergunta 571, Kardec indaga se somente os Espíritos elevados desempenham missões, ao que lhe informam que “A importância das missões corresponde às capacidades e à elevação do Espírito. O estafeta que leva um telegrama ao seu destinatário desempenha uma perfeita missão, se bem que diversa da de um general.” [10] Certa vez, numa palestra, ouvi que nós, na condição evolutiva em que nos encontramos, somos os missionários do milímetro, ao passo que aqueles Espíritos luminares que admiramos são os missionários do quilômetro... Mas somos missionários, porque detemos certa tarefa, por singela que seja. O muito só nos será confiado se dermos conta do pouco. Humberto Hoden conta-nos que Gandhi fora procurado, um dia, por dois homens, interessados em iniciarem-se nos mistérios do mundo espiritual. Gandhi aceitou e para começar a iniciação espiritual, encarregou os dois candidatos de varrerem o pátio coberto de folhas secas. Os dois encararam o desafio. Quando concluído, solicitou-lhes que descascassem batatas e cortassem verduras, além de racharem a lenha para o fogo do almoço. Os caras fizeram. Na parte da tarde, mandou-lhes com latas de creolina, às aldeias da vizinhança para fazerem a limpeza nas privadas e fossas, como ele mesmo, Gandhi, costumava fazer. Os candidatos passaram a tarde fazendo isso. Ao voltarem do serviço, nada espiritual, indagaram-se: “Será que Gandhi se esqueceu do nosso pedido de iniciação espiritual?” De noite, tomaram uma refeição frugal, ao lado dos demais habitantes da colônia. No dia seguinte, as mesmas atividades com pequenas variações. Os dois estavam cada vez mais decepcionados. Esperavam, quem sabe, que fossem convidados para uma sala misteriosa, onde visualizassem algum ritual secreto... No terceiro dia, um deles teve a coragem de perguntar à Gandhi:

- Mestre, quando começa a nossa iniciação?

- Já começou – respondeu Gandhi.

- E quando terminará?

- Terminará quando vocês fizerem de boa vontade o que até agora fizeram de má vontade.

Os dois candidatos à suprema espiritualidade sumiram. [11]

            Na pergunta 572 de “O Livro dos Espíritos”, Kardec deseja saber se a missão de um Espírito lhe é imposta, ou se ele a solicita, ao que os Espíritos informam-lhe que ele a pede e se sente, naturalmente feliz se a consegue. Determinada missão, pode, no entanto, ser solicitada por diversos Espíritos, o que acontece com alguma freqüência, mas nem todos são aceitos para o desempenho dela. Acredito que questões de mérito e capacidade são avaliadas pelos Espíritos responsáveis pelas reencarnações daqueles que desempenharão determinada tarefa.

            Na pergunta 573, Kardec indaga:

Em que consiste a missão dos Espíritos encarnados?

“Em instruir os homens, em lhes auxiliar o progresso; em lhes melhorar as instituições, por meios diretos e materiais. As missões, porém, são mais ou menos gerais e importantes. O que cultiva a terra desempenha tão nobre missão, como o que governa, ou o que instrui. Tudo em a Natureza se encadeia. Ao mesmo tempo que o Espírito se depura pela encarnação, concorre, dessa forma, para a execução dos desígnios da Providência. Cada um tem neste mundo a sua missão, porque todos podem ter alguma utilidade.” [12]

            Tem muitas informações nesta resposta. Cabe-nos instruir os homens, através de nossa experiência, a fim de lhes ajudar a progredir. Compete-nos melhorar as instituições humanas, por meios diretos e materiais. Onde nos encontremos, no local de trabalho, num templo religioso, num clube em que sejamos sócios, num partido político... Devemos concorrer para a melhora deste ambiente, torná-los locais onde o ser humano seja valorizado e promovido em todas as suas capacidades. O agricultor e o governante, para os Espíritos Superiores, desempenham nobres missões. Devem ser valorizados nos locais onde se encontrem. Os Espíritos não fazem distinções sociais, tão ao gosto dos nossos preconceitos materialistas. Enxergam dignidade na tarefa do lavrador, como na do que manda em multidões. É certo que os efeitos das atitudes dos governantes são mais amplos do que a do cultivador do solo. Pode ser maior neste aspecto, mas ambas são cartas de serviço confiadas pela Providência a fim de que eles cresçam e desenvolvam-se. “Diante da Lei, todas as tarefas do Bem são missões de caráter divino” [13], como afirma Emmanuel. Deus, ainda segundo ele, é o Grande Anônimo, que trabalha por nós, provendo-nos a vida. Emmanuel, aliás, tem uma frase lapidar: “É indispensável que o Espírito aprenda a ser grande nas tarefas humildes, para que saiba ser humilde nas grandes tarefas.” [14]

            Na questão 574 Kardec pergunta qual seria a missão das pessoas voluntariamente inúteis. Os Espíritos respondem que estas unicamente para si vivem, e que não sabem tornarem-se úteis para os demais. Expiarão a voluntária inutilidade, muitas vezes já neste mundo, pelo desgosto e aborrecimento que a vida lhes causa. Os preguiçosos encarnados não são senão os preguiçosos do mundo espiritual, que às vezes podem ter recuado diante da execução de uma obra que lhes fora confiada ou aqueles que cedem, porque se identificam, às sugestões pela ociosidade, por parte de Espíritos inferiores.

            Por fim, na pergunta 575 Kardec considera que as ocupações comuns parecem mais deveres que missões, sendo que estas teriam caráter menos exclusivo, de importância menos pessoal. Indaga, então, como se poderia reconhecer que um homem tem realmente na Terra uma determinada missão. Os Espíritos respondem-lhe: “Pelas grandes coisas que opera, pelos progressos a cuja realização conduz seus semelhantes.” [15] Seriam, portanto, Divaldo Franco, Chico Xavier, indivíduos portadores de missões, de acordo com essa idéia, uma vez que realizaram grandes trabalhos em benefício da coletividade, através do Espiritismo. Vidas de renuncia, onde abrem mão de projetos de satisfação egoística em detrimento da satisfação que se consegue quando se consegue criar o sorriso no rosto de alguém.



[1] XAVIER, Francisco Cândido. Libertação. FEB. Rio de Janeiro, 1996, p. 79.

[2] KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos. FEB. Rio de Janeiro, 1995, p. 284.

[3] Idem.

[4] XAVIER, Francisco Cândido. Nos Domínios da Mediunidade. FEB, Rio de Janeiro, 1995, p. 138.

[5] Idem, p. 144.

[6] KARDEC, Allan. Op. cit., p.284.

[7] Idem.

[8] XAVIER, Francisco Cândido. Missionários da Luz. FEB, Rio de Janeiro, 1997, p. 68.

[9] Idem, p. 71 a 73.

[10] KARDEC, Allan. Op. Cit., p. 285.

[11] HODEN, Humberto. Mahatma Gandhi. Martin Claret, 1998, p. 132.

[12] KARDEC, Allan. Op. Cit., p. 285.

[13] XAVIER, Francisco Cândido. Justiça Divina. FEB, Rio de Janeiro, 1997, p. 56.

[14] XAVIER, Francisco Cândido. Justiça Divina. FEB, Rio de Janeiro, 1997, p. 110.

[15] KARDEC, Allan. Op. Cit., p. 286.

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Parábola do Semeador (O Evangelho S. Espiritismo, Cap. XVII, ítem 5 ) - Palestra da Reunião Pública do dia 14/09/2010.

15/09/2010 20:00

Naquele mesmo dia, tendo saído de casa, Jesus sentou-se à borda do mar; - em torno dele logo reuniu-se grande multidão de gente; pelo que entrou numa barca, onde sentou-se, permanecendo na margem todo o povo. – Disse então muitas coisas por parábolas, falando-lhes assim:

               Aquele que semeia saiu a semear; - e, semeando, uma parte da semente caiu ao longo do caminho e os pássaros do céu vieram e a comeram. – Outra parte caiu em lugares pedregosos onde não havia muita terra; as sementes logo brotaram, porque carecia de profundidade a terra onde haviam caído. – Mas, levantando-se, o sol as queimou e, como não tinham raízes, secaram. – Outra parte caiu entre espinheiros e estes, crescendo, as abafaram. – Outra, finalmente, caiu em terra boa e produziu frutos, dando algumas sementes cem por um, outras sessenta e outras trinta. – Ouça quem tem ouvidos de ouvir.

               Escutai, pois, vós outros a parábola do semeador. – Quem quer que escuta a palavra do reino e não lhe dá atenção, vem o espírito maligno e tira o que lhe fora semeado no coração. Esse é o que recebeu a semente ao longo do caminho. – Aquele que recebe a semente em meio das pedras é o que escuta a palavra e que a recebe com alegria no primeiro momento. – Mas, não tendo raízes, dura apenas algum tempo. Em sobrevindo reveses e perseguições por causa da palavra, tira ele daí motivo de escândalo e de queda. – Aquele que recebe a semente entre espinheiros é o que ouve a palavra; mas, em quem, logo, os cuidados deste século e a ilusão das riquezas abafam aquela palavra e a tornam infrutífera. – Aquele, porém, que recebe a semente em boa terra é o que escuta a palavra, que lhe presta atenção e em quem ela produz frutos, dando cem ou sessenta, ou trinta por um. (S. Mateus, 13: 1 a 9 e 18 a 23.)

           

            A parábola do semeador é encontrada em 3 evangelhos. Além do de Mateus, utilizado por Kardec, o de Marcos, ambos muito parecidos, ainda que no dele a narrativa esteja maior, e o de Lucas, que traz detalhes que destoam dos outros dois, ainda que seja o que traz a história de maneira mais sucinta. No de Lucas, ao referir-se às sementes que caíram na estrada, afirma que foram pisadas. Mais adiante, ao tratar das que caíram entre os espinhos, aponta que com ela (a semente) teriam crescido os espinhos.

            Jesus apresenta-nos, em linhas gerais, algumas condições da alma humana, diante do contato com a revelação divina, com a mensagem do Reino de Deus.  Diante da multiforme capacidade de entendimento das pessoas, ali presentes (ou as de nossos tempos), utiliza-se de parábolas para ministrar seus ensinamentos. Segundo Torres Pastorino[1], estas parábolas “são calcadas, de modo, geral, em fatos e situações conhecidas pelos ouvintes, colhidos da vida diária; dado que a maioria dos circunstantes era constituída de lavradores e pescadores, donas de casa e pequenos comerciantes, é dessas profissões que são tirados os exemplos.”

            Três grupos de sementes não dão resultados, mas a quarta parte dá muito fruto. Ainda segundo Pastorino,

Os terrenos montanhosos e pedregosos do norte da Galiléia, com atalhos batidos a atravessar os campos, com espinheiros e cardos vigorosos a brotar quase espontaneamente, sem que eles dispusessem de meios para total erradicação; com trechos em que a crosta de pedra é rasa, recoberta apenas por delgada camada de terra, oferecia ampla margem de experiência pessoal aos ouvintes para a compreensão da historieta.[2]

            O autor ainda aponta que, como em todas as parábolas, os dados não precisam ser exatos, podendo ser exagerados ou diminuídos, a fim de enfatizar aspectos do que se pretende ensinar. Segundo ele, “nenhum campo da Palestina (...) produz a cem por um.” [3] O normal do rendimento iria de quatro a dez sementes por um, sendo um ótimo resultado conseguir-se entre dez e vinte por um.

            Abstraia-se, na parábola, a “imprevidência” do semeador, que deixa cair as sementes em terrenos onde, sabidamente, não seriam propícios à plantação. O espírito do ensinamento é enfatizar a incapacidade de quem o recebe, supondo-se perfeita a capacidade do Semeador.

            Possivelmente a explicação que os discípulos receberam de Jesus tenha se dado em um momento de intimidade, depois de dissolvida a multidão, quem sabe, ao chegar em casa. “Por que lhes falas em parábolas”, dá a entender que o método já vinha sendo utilizado por Jesus em suas pregações.

            Segundo Pastorino, aos discípulos é dado conhecer os segredos do reino dos céus. Ele nota o emprego da palavra “tà mystéria”, que entre os gregos significaria a doutrina religiosa secreta ou oculta, revelada a iniciados.  Ainda seguindo os raciocínios deste autor, quando Jesus menciona o fato das pessoas

Verem (lerem) e não entenderem (o sentido profundo real) e de ouvirem e não perceberem (esse sentido), provém de que seu coração (sua mente) está enregelada (pela vaidade e pelo egoísmo); então, eles fecham os olhos e tapam os ouvidos (para não serem obrigados a aceitar a interpretação correta; e isso lhes é permitido), para que, vendo (lendo) com os olhos, e ouvindo com os ouvidos, não sucedam que entendam com o coração (a mente) e se voltem e eu os sare, porque a eles NÃO INTERESSA a cura (libertação) das coisas materiais do mundo, as quais estão apegados em profundidade.[4]

            Recordo-me de uma passagem narrada no Evangelho de João onde os discípulos afirmam: “Duro é este discurso, quem o pode ouvir.” [5] A mensagem cristã não é de facilidades, como muitas denominações protestantes às vezes apresentam. Jesus prometeu-nos alívio, não isenção das dores, não o “Pare de sofrer” apresentado por aí. “No mundo, tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo.” [6] Se Ele venceu, nós também o podemos. “Vós sois deuses” [7], podemos fazer o que Jesus fez, atingir o seu patamar, desde que nos empenhemos para tanto. Logicamente, Jesus tornou-se o que é num tempo que não temos condições de medir, mas não é, por isso, inatingível. Evidentemente, uma longuíssima série de reencarnações aguarda-nos, onde reescreveremos nossa história e cresceremos intelectual e moralmente. Não por acaso, os Espíritos Superiores apontaram-nos Jesus como guia e modelo em O Livro dos Espíritos.[8]

            Assim, acompanhando Pastorino, não há má intenção da parte da Divindade no sentido de estabelecer-nos um programa que não pudéssemos atingir. Existe a nossa má-vontade, por ignorância que, embora digamos na consciência atual que queremos nos converter, lá no fundo, no nosso mundo íntimo, não desejamos semelhante mudança. Ainda em O Livro dos Espíritos, na questão n° 909, quando Kardec pergunta “Poderia sempre o homem, pelos seus esforços, vencer as suas más inclinações?” Ao que os Espíritos respondem: “Sim, e, frequentemente, fazendo esforços muito insignificantes. O que lhe falta é a vontade. Ah! Quão poucos dentre vós fazem esforços!”[9] Kardec não se dá por vencido e, para cercar a questão, questiona se não existiram paixões tão vivas e tão irresistíveis, que a vontade seria impotente para domá-las. Os Espíritos desenvolvem, então, o raciocínio:

“Há muitas pessoas que dizem: Quero, mas a vontade só lhes está nos lábios. Querem, porém muito satisfeitas ficam que não seja como “querem”. Quando o homem crê que não pode vencer as suas paixões, é que seu Espírito se compraz nelas, em consequência da sua inferioridade. Compreende a sua natureza espiritual aquele que as procura reprimir. Vencê-las é, para ele, uma vitória do Espírito sobre a matéria.” [10]

            As parábolas utilizadas por Jesus, para Pastorino, são um sinal da misericórdia divina,

pois permite às criaturas que tenham tempo de ir evoluindo, e a cada nova encarnação possam ir aprofundando o sentido oculto das parábolas, conseguindo assim atingir a realidade total do ensino de Jesus. (...) um ensino que deveria ir sendo compreendido gradativamente pela humanidade, à proporção que fossem evoluindo os homens. [11]

            Deve-se ressaltar, no entanto, que os ensinamentos morais de Jesus foram dados abertamente. O amar ao próximo como a si mesmo é bem claro.

            Acompanho, agora, a interpretação de Pastorino para as diferentes realidades de pessoas, sugerida por Jesus, na Parábola do Semeador:

1º. A primeira categoria é a dos que estão presos às sensações e que portanto se deixam influir pelo mau (...) Por esses, que mais amam ao corpo e suas comodidades e confortos acima de tudo, a doutrina da Palavra não chega a ser nem sequer compreendida, pois é julgada “loucura”, sonho, tolice, etc. ... Eles se acham “à beira do caminho”, ou seja, à margem da espiritualidade (...) com espírito bem materializado.

2º. A segunda é dos que vivem presos a animalidade, e portanto com preponderância das emoções, e nesse setor se inclui a maioria esmagadora da humanidade. Deixam-se levar pelo gosto e desgosto, pelo prazer e desprazer, pela simpatia e antipatia, pelo amor e pelo ódio, pela alegria e pela dor, encontrando a estrada da vida eriçada de pedras e escolhos, que representam os carmas negativos, os resultados ruins de ações e pensamentos de vidas anteriores. Estes ouvem a doutrina (...) com alegria, mas quando sofrem os embates da própria vida, os sofrimentos e ingratidões (quando tropeçam nas pedras), se escandalizam (...) e arrepiam carreira. (...) ao primeiro revés, retrocedem amedrontados e, como disse Jesus, escandalizados, porque julgam que, uma vez na estrada certa, o sofrimento e as pedras do caminho DEVERIAM  ser retirados para que sua jornada fosse de rosas... Acham-se, então, COM DIREITO a certos privilégios... A raiz deles é pequena: qualquer contrariedade maior (...) é suficiente para afastá-los do espiritualismo.

3º. A terceira categoria é daqueles que já se encontram com o intelecto mais desenvolvido, e portanto apresentam certo domínio sobre as emoções, embora estas ainda tenham bastante influência nas decisões intelectivas. Ocorre, então, que vivem como entre “espinheiros”, que são constituídos pelos cuidados e “preocupações da vida”, pela “ilusão das riquezas”, pela “cobiça de tantas outras coisas” transitórias, que são verdadeiras ilusões. Estes ouvem e até gostam, chegam mesmo a compreender a doutrina (...) Mas NÃO PODEM fazê-las frutificar, porque estão muito OCUPADOS com suas atividades terrenas. (...) NÃO TENHO TEMPO...

4º. A quarta categoria é a dos que se iniciam na senda: ouviram a Palavra, aceitaram-na com amor, querem vivê-la. Para isso, buscam perceber a presença e a ação da individualidade. Começam a distinguir entre a realidade do Espírito (dando-lhe supremacia) e a ilusão da matéria (...) já compreendem a necessidade de dedicar algum tempo de sua vida às orações e meditações que visam à busca do Eu Interno. (...) embora pudessem, realmente, fazer um pouco mais.

5º. A quinta categoria compreende aqueles que já aprofundaram mais o espiritualismo, que já conseguem penetrar certos mistérios ou segredos do reino (...) Homens que superaram todo ilusionismo material e vivem na ânsia do Encontro Sublime (...) São os místicos (...) que já experimentaram a realidade do Espírito e dessa realidade tem lampejos seguros.

6º. Finalmente a sexta categoria é a daqueles que já obtiveram a união, ou melhor, a Unificação Total e permanente com o Cristo Interno, e portanto já se tornaram Cristificados, conseguindo a libertação plena.

            Aos primeiros, não dá para chamá-los de indiferentes. Podem ser indiferentes às questões morais, da alma, mas não o são quanto ao atendimento de suas paixões. Podemos dizer que são os “egoístas em si”. São os de estômago cheio, saciados por todas as formas, porém de almas vazias. “Uma pessoa é única ao estender a mão, e ao recolhê-la inesperadamente torna-se mais uma. O egoísmo unifica os insignificantes” [12], diria William Shakespeare a respeito dos egoístas. Em O Céu e o Inferno, de Kardec, no capítulo que trata dos Espíritos endurecidos, há o caso de Angèle, nulidade sobre a Terra. Na reunião onde dialogam com este Espírito, questionam-lhe: “E de que modo preenchestes a existência?” Ao que ela respondeu: “Divertindo-me em solteira e enfadando-me como mulher.” O guia do médium que recebeu a comunicação, chamado “Monod”, informa que

Ângela era uma dessas criaturas sem iniciativa, cuja existência é tão inútil a si como ao próximo. Amando apenas o prazer, incapaz de procurar no estudo, no cumprimento dos deveres domésticos e sociais as únicas satisfações do coração, que fazem o encanto da vida (...) ela não pôde empregar a juventude senão em distrações frívolas; e quando deveres mais sérios se lhe impuseram, já o mundo se lhe havia feito um vácuo, porque vazio também estava seu coração. Sem faltas graves, mas também sem méritos, ela fez a infelicidade do marido, comprometendo pela sua incúria e desleixo o futuro dos filhos. (...) Ficai bem certos de que não basta abster-vos de faltas: é preciso praticar as virtudes que lhe são opostas. [13]

            Angela não teve erros grosseiros, foi indiferente às questões sérias da vida, dando espaço para as futilidades que só atenderam a seus interesses particulares. Poderíamos lembrar-nos dos viciados, qualquer que seja o vício. A agressão a si mesmos é maior, com o pano de fundo de suas ações sendo o mesmo egoísmo.

            Podemos enxergar os da segunda categoria como aqueles que esperam da Providência benefícios aos quais não são merecedores, ainda que desejem ser trabalhadores de Jesus. Jesus, aliás, foi o maior de todos e o que recebeu de nós? A cruz...  Ele que não tinha erros a expiar... Nós os temos, e não devem se poucos.  Na tarefa cristã, como diz Emmanuel, Começar é fácil, continuar é difícil e chegar ao fim é crucificar-se. Entendamos que, uma vez vinculados ao trabalho de Jesus, o socorro às nossas necessidades reais se fará presente. Deus provê as aves do céu e os lírios dos campos, a nós também o fará. Entretanto, nossa estrada não será atapetada, como a Dele, bem como a daqueles que o amaram e seguiram não o foi.

            Os terceiros são os “muito ocupados” com as “questões práticas da vida”, que deixam de lado o essencial, pela escolha que fazem. Talvez pretendam dedicar-se a algum trabalho assistencial quando se aposentem numa situação de fartura, ou proponham-se a ajudar alguém quando reúnam possibilidades financeiras folgadas.  Certa vez

perguntaram ao Dalai Lama:

- O que mais te surpreende na Humanidade?

E ele respondeu:

- Os homens... Porque perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem dinheiro para recuperar a saúde.

E por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem do presente de tal forma que acabam por não viver nem o presente nem o futuro. E vivem como se nunca fossem morrer... e morrem como se nunca tivessem vivido. [14]

            Quantos não conhecemos nestas condições? Quantos vimos passar pelo trabalho no bem e que, por estes motivos, ou bem semelhantes, vimos afastarem-se? E, provocativamente, para nós, quantas vezes flertamos com essa possibilidade? É para pensarmos.

            O quarto grupo são aqueles que tentam conciliar algum tempo de suas vidas às atividades enobrecedoras, que se dedicam, em algumas horas semanais, a alguma atividade no bem. Os trabalhos voluntários, em diferentes setores, estão aí. 

Segundo pesquisa da ONU, o número de voluntários no Brasil passou de 22 milhões, para 42 milhões após o Ano Internacional. Outro dado também chama atenção: uma pesquisa DataFolha revela que 83% dos brasileiros acham que o trabalho voluntário é muito importante para o país (...) [15]

            O quinto e o sexto grupos eu não classificarei. Direi nomes de algumas personalidades, exemplares para nós, segundo o meu entendimento. Gandhi, Martin Luther King Jr., Francisco Cândido Xavier e Madre Teresa de Calcutá. Eis que, em O Livro dos Espíritos, em sua pergunta 912 Kardec propõe: “Qual o meio mais eficiente de combater-se o predomínio da natureza corpórea?” E os Espíritos respondem: “Praticar a abnegação.” [16] De abnegação estes entendem, por isso a lembrança. Abnegação, segundo o Minidicionário Aurélio significa “desprendimento”. “Nunca quisemos que nos considerassem expectadores (...)” [17] afirmou Luther King ao escolher permanecer Montgomery, no sul dos Estados Unidos, onde o preconceito racial era violento, abrindo mão de ensinar em Boston.

Se alguém estiver perto de mim quando chegar meu dia, não desejo um grande funeral. E se alguém quiser falar de mim, que não seja muito. (...) Eu só quero que digam que Martin Luther King tratou de amar alguém. Sim, digam que eu era um tambor. Um tambor da justiça. Um tambor da paz. Um tambor da retidão. Tudo o mais não importa. (...) Só quero deixar atrás de mim uma existência comprometida. [18]

            Madre Teresa de Calcutá, quando entrega-se ao trabalho com os “mais pobres dentre os pobres” também encontra dificuldades. Aprende técnicas de enfermagem, durante quatro meses e aluga um barraco na favela atrás do convento onde passara anos. Começa seu trabalho ensinando o alfabeto bengali a cinco crianças. Com uma varinha, traçava as letras no chão. O calor na favela chegava aos 46°, com alta umidade do ar. Os ratos e baratas passeavam no chão de seu barraco. Na favela, percorria os barracos e procurava ser útil dentro de suas possibilidades.

A equipe da NBC tinha ido a Calcutá para entrevistá-la, além de documentar seu trabalho diário.

O entrevistador e o operador de câmera seguiam-lhe pela cidade, mesmo quando, como de hábito, ela parava para remexer em imensos focos de imundície. Madre Teresa sabia que, naqueles locais pútridos, freqüentados por cães vadios, ratos e ladrões à procura de algo para comer, continuamente eram também atirados os “excluídos” da humanidade: criaturas inocentes às quais era negada a dádiva da vida. E Madre Teresa salvou tantos deles, porque aqueles lugares assustadores eram sua meta habitual e obrigatória.

Ela arregaçava as mangas como faz frequentemente quando trabalha e punha-se a remexer, com suas pequenas mãos nodosas, aquela imundície nauseante. O operador de câmera e o entrevistador ao seu lado, incomodados, com máscaras no rosto para resguardar-se do mau cheiro e dos miasmas.

De repente, as mãos de Teresa agarraram algo. Seus olhos iluminaram-se. Da podridão, ela tirou um pequeno volume: o corpinho de um recém-nascido, sujo, ensangüentado, com os olhos fechados e o cordão umbilical ainda por cortar. Com rapidez, porém cuidadosa, lançou-se sobre aquele pequeno ser tentando fazer ressurgir a vida dentro dele. Sacudia-o, massageava-o com energia. Chegou a fazer-lhe respiração boca a boca, mas a criança não reagia, parecia mesmo no fim. “Talvez fosse melhor deixá-lo morrer”, disse o entrevistador. Madre Tereza lançou-lhe um olhar em chamas: “Não”, gritou-lhe, “ainda está vivo e tudo que é vivo é o nosso próximo, é Deus”. Com renovada energia, retomou sua tarefa desesperada e, depois de alguns instantes, a criança soltou um gemido. Ela apertou-a contra o peito gritando de alegria e a levou para casa. Estava salvo! Estava vivo! [19]

            Penso que, muitas vezes, guardamos alguns elementos das três primeiras categorias. Acredito que por enquanto estamos tentando estar na quarta categoria, começando no bem, cheios de elementos do nosso passado ainda presentes em nós. Penso que a classificação foi utilizada por Jesus porque, apesar de “misturarmos categorias”, uma delas se destaca em nós. Trabalhemos, portanto, para que o destaque seja sempre da quarta categoria em diante.



[1] PASTORINO, Carlos Juliano Torres. Sabedoria do Evangelho, vol. 3. Rio de Janeiro: Sabedoria, 1964, p. 27.

[2] Idem, p. 28.

[3] Idem.

[4] Idem, p. 35.

[5] João, 6: 60.

[6] João 16: 33.

[7] João 10: 34.

[8] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 1995, p. 308.

[9] Idem, p. 418.

[10] Idem.

[11] PASTORINO, Carlos Juliano Torres. Op. cit., p. 36.

[12] SHAKSPEARE, Willian. https://www.pensador.info/tag/egoismo/

[13] KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Rio de Janeiro: FEB, 1997. pág. 367.

[14] GYATSO, Tenzin (Dalai Lama). https://www.pensador.info/autor/Dalai_Lama/

[15] O trabalho voluntário no Brasil. https://favelacult.blogspot.com/2010/01/o-trabalho-voluntario-no-brasil-pos-o.html

[16] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 1995, p. 418.

[17] RENA, Lilí. Luther King, Peregrino da Liberdade. São Paulo: Paulinas, 1996, p. 23.

[18] Idem, p. 76-77.

[19] ALLEGRI, Renzo. Teresa dos Pobres, Conversando com a Madre de Calcutá. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 10-11.

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Biografia de Allan Kardec

18/05/2010 22:11

Nascido em Lion, a 3 de outubro de 1804, de uma família antiga que se distinguiu na magistratura e na advocacia, Allan Kardec (Hippolyte Léon Denizard Rivail) não seguiu essas carreiras. Desde a primeira juventude, sentiu-se inclinado ao estudo das ciências e da filosofia.

Educado na Escola de Pestalozzi, em Yverdun (Suíça), tornou-se um dos mais eminentes discípulos desse célebre professor e um dos zelosos propagandistas do seu sistema de educação, que tão grande influência exerceu sobre a reforma do ensino na França e na Alemanha.

Dotado de notável inteligência e atraído para o ensino, pelo seu caráter e pelas suas aptidões especiais, já aos catorze anos ensinava o que sabia àqueles dos seus condiscípulos que haviam aprendido menos do que ele. Foi nessa escola que lhe desabrocharam as idéias que mais tarde o colocariam na classe dos homens progressistas e dos livre-pensadores.

Nascido sob a religião católica, mas educado num país protestante, os atos de intolerância que por isso teve de suportar, no tocante a essa circunstância, cedo o levaram a conceber a idéia de uma reforma religiosa, na qual trabalhou em silêncio durante longos anos com o intuito de alcançar a unificação das crenças. Faltava-lhe, porém, o elemento indispensável à solução desse grande problema.

O Espiritismo veio, a seu tempo, imprimir-lhe especial direção aos trabalhos.

Concluídos seus estudos, voltou para a França. Conhecendo a fundo a língua alemã, traduzia para a Alemanha diferentes obras de educação e de moral e, o que é muito característico, as obras de Fénelon, que o tinham seduzido de modo particular.

Era membro de várias sociedades sábias, entre outras, da Academia Real de Arras, que, em o concurso de 1831, lhe premiou uma notável memória sobre a seguinte questão: Qual o sistema de  estudos mais de harmonia com as necessidades da época?

De 1835 a 1840, fundou, em sua casa, à rua de Sèvres, cursos gratuitos de Química, Física, Anatomia comparada, Astronomia, etc., empresa digna de encômios em todos os tempos, mas, sobretudo, numa época em que só um número muito reduzido de inteligências ousava enveredar por esse caminho.

Preocupado sempre com o tornar atraentes e interessantes os sistemas de educação, inventou, ao mesmo tempo, um método engenhoso de ensinar a contar e um quadro mnemônico da História de França, tendo por objetivo fixar na memória as datas dos acontecimentos de maior relevo e as descobertas que iluminaram cada reinado.

Entre as suas numerosas obras de educação, citaremos as seguintes: Plano proposto para melhoramento da Instrução pública (1828); Curso prático e teórico de Aritmética, segundo o método Pestalozzi, para uso dos professores e das mães de família (1824); Gramática francesa clássica (1831); Manual dos exames para os títulos de capacidade; Soluções racionais das questões e problemas de Aritmética e de Geometria (1846); Catecismo gramatical da língua francesa (1848); Programa dos cursos usuais de Química, Física, Astronomia, Fisiologia, que ele professava no Liceu Polimático; Ditados normais dos exames da Municipalidade e da Sorbona, seguidos de Ditados especiais sobre as dificuldades ortográficas (1849), obra muito apreciada na época do seu aparecimento e da qual ainda recentemente eram tiradas novas edições.

Antes que o Espiritismo lhe popularizasse o pseudônimo de Allan Kardec, já ele se ilustrara, como se vê, por meio de trabalhos de natureza muito diferente, porém tendo todos, como objetivo, esclarecer as massas e prendê-las melhor às respectivas famílias e países.

Pelo ano de 1855, posta em foco a questão das manifestações dos Espíritos, Allan Kardec se entregou a observações perseverantes sobre esse fenômeno, cogitando principalmente de lhe deduzir as conseqüências filosóficas. Entreviu, desde logo, o princípio de novas leis naturais: as que regem as relações entre o mundo visível e o mundo invisível. Reconheceu, na ação deste último, uma das forças da Natureza, cujo conhecimento haveria de lançar luz sobre uma imensidade de problemas tidos por insolúveis, e lhe compreendeu o alcance, do ponto de vista religioso.

Suas obras principais sobre esta matéria são: O Livro dos Espíritos, referente à parte filosófica, e cuja primeira edição apareceu a 18 de abril de 1857; O Livro dos Médiuns, relativo à parte experimental e científica (janeiro de 1861); O Evangelho segundo o Espiritismo, concernente à parte moral (abril de 1864); O Céu e o Inferno, ou A justiça de Deus segundo o Espiritismo (agosto de 1865); A Gênese, os Milagres e as Predições (janeiro de 1868); A Revista Espírita, jornal de estudos psicológicos, periódico mensal começado a 1º de janeiro de 1858. Fundou em Paris, a 1º de abril de 1858, a primeira Sociedade espírita regularmente constituída, sob a denominação de Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, cujo fim exclusivo era o estudo de quanto possa contribuir para o progresso da nova ciência. Allan Kardec se defendeu, com inteiro fundamento, de coisa alguma haver escrito debaixo da influência de idéias preconcebidas ou sistemáticas. Homem de caráter frio e calmo, observou os fatos e de suas observações deduziu as leis que os regem. Foi o primeiro a apresentar a teoria relativa a tais fatos e a formar com eles um corpo de doutrina, metódico e regular.

Demonstrando que os fatos erroneamente qualificados de sobrenaturais se acham submetidos a leis, ele os incluiu na ordem dos fenômenos da Natureza, destruindo assim o último refúgio do maravilhoso e um dos elementos da superstição.

Durante os primeiros anos em que se tratou de fenômenos espíritas, estes constituíram antes objeto de curiosidade, do que de meditações sérias. O Livro dos Espíritos dez que o assunto fosse considerado sob aspecto muito diverso. Abandonaram-se as mesas girantes, que tinham sido apenas um prelúdio, e começou-se a atentar na doutrina, que abrange todas as questões de interesse para a Humanidade.

Data do aparecimento de O Livro dos Espíritos a fundação de Espiritismo que, até então, só contara com elementos esparsos, sem coordenação, e cujo alcance nem toda gente pudera apreender. A partir daquele momento, a doutrina prendeu a atenção de homens sérios e tomou rápido desenvolvimento. Em poucos anos, aquelas idéias conquistaram numerosos aderentes em todas as camadas sociais e em todos os países. Esse êxito sem precedentes decorreu sem dúvida da simpatia que tais idéias despertaram, mas também é devido, em grande parte, à clareza com que foram expostas e que é um dos característicos dos escritos de Allan Kardec.

Evitando as fórmulas abstratas da Metafísica, ele soube fazer que todos o lessem sem fadiga, condição essencial à vulgarização de uma idéia. Sobre todos os pontos controversos, sua argumentação, de cerrada lógica, poucas ensanchas oferece à refutação e predispõe à convicção. As provas materiais que o Espiritismo apresenta da existência da alma e da vida futura tendem a destruir as idéias materialistas e panteístas. Um dos princípios mais fecundos dessa doutrina e que deriva do precedente é o da pluralidade das existências, já entrevisto por uma multidão de filósofos antigos e modernos e, nestes últimos tempos, por João Reynaud, Carlos Fourier, Eugênio Sue e outros. Conservara-se, todavia, em estado de hipótese e de sistema, enquanto o Espiritismo lhe demonstrara a realidade e prova que nesse princípio reside um dos atributos essenciais da Humanidade. Dele promana a explicação de todas as aparentes anomalias da vida humana, de todas as desigualdades intelectuais, morais e sociais, facultando ao homem saber donde vem, para onde vai, para que fim se acha na Terra e por que aí sofre.

As idéias inatas se explicam pelos conhecimentos adquiridos nas vidas anteriores; a marcha dos povos e da Humanidade, pela ação dos homens dos tempos idos e que revivem, depois de terem progredido; as simpatias e antipatias, pela natureza das relações anteriores. Essas relações, que religam a grande família humana de todas as épocas, dão por base, aos grandes princípios de fraternidade, de igualdade, de liberdade e de solidariedade universal, as próprias leis da Natureza e não mais uma simples teoria.

Em vez do postulado: Fora da Igreja não há salvação, que alimenta a separação e a animosidade entre as diferentes seitas religiosas e que há feito correr tanto sangue, o Espiritismo tem como divisa: Fora da Caridade não há salvação, isto é, a igualdade entre os homens perante Deus, a tolerância, a liberdade de consciência e a benevolência mútua.

Em vez da fé cega, que anula a liberdade de pensar, ele diz: Não há fé inabalável, senão a que pode encarar face a face a razão, em todas as épocas da Humanidade. A fé, uma base se faz necessária e essa base é a inteligência perfeita daquilo em que se tem de crer. Para crer, não basta ver, é preciso, sobretudo, compreender. A fé cega já não é para este século. É precisamente ao dogma da fé cega que se deve o ser hoje tão grande o número de incrédulos, porque ela quer impor-se e exige a abolição de uma das mais preciosas faculdades do homem: o raciocínio e o livre-arbítrio.

Trabalhador infatigável, sempre o primeiro a tomar da obra e o último a deixá-la, Allan Kardec sucumbiu, a 31 de março de 1869, quando se preparava para uma mudança de local, imposta pela extensão considerável de suas múltiplas ocupações. Diversas obras que ele estava quase a terminar, ou que aguardavam oportunidade para vir a lume, demonstrarão um dia, ainda mais, a extensão e o poder das suas concepções.

Morreu conforme viveu: trabalhando. Sofria, desde longos anos, de uma enfermidade do coração, que só podia ser combatida por meio do repouso intelectual e pequena atividade material. Consagrado, porém, todo inteiro à sua obra, recusava-se a tudo o que pudesse absorver um só que fosse de seus instantes, à custa das suas ocupações prediletas. Deu-se com ele o que se dá com todas as almas de forte têmpera: a lâmina gastou a bainha.

O corpo se lhe entorpecia e se recusava aos serviços que o Espírito lhe reclamava, enquanto este último, cada vez mais vivo, mais enérgico, mais fecundo, ia sempre alargando o círculo de sua atividade.

Nessa luta desigual não podia a matéria resistir eternamente. Acabou sendo vencida: rompeu-se o aneurisma e Allan Kardec caiu fulminado. Um homem houve de menos na Terra; mas, um grande nome tomava lugar entre os que ilustraram este século; um grande Espírito fora retemperar-se no Infinito, onde todos os que ele consolara e esclarecera lhe aguardavam impacientemente a volta!

A morte, dizia, faz pouco tempo, redobra os seus golpes nas fileiras ilustres!... A quem virá ela agora libertar?

Ele foi, como tantos outros, recobrar-se no Espaço, procurar elementos novos para restaurar o seu organismo gasto por um vida de incessantes labores. Partiu com os que serão os fanais da nova geração, para voltar em breve com eles a continuar e acabar a obra deixada em dedicadas mãos.

O homem já aqui não está; a alma, porém, permanecerá entre nós. Será um protetor seguro, uma luz a mais, um trabalhador incansável que as falanges do Espaço conquistaram. Como na Terra, sem ferir a quem quer que seja, ele fará que cada um lhe ouça os conselhos oportunos; abrandará o zelo prematuro dos ardorosos, amparará os sinceros e os desinteressados e estimulará os mornos. Vê agora e sabe tudo o que ainda há pouco previa! Já não está sujeito às incertezas, nem aos desfalecimentos e nos fará partilhar da sua convicção, fazendo-nos tocar com o dedo a meta, apontando-nos o caminho, naquela linguagem clara, precisa, que o tornou aureolado nos anais literários.

Já não existe o homem, repetimo-lo. Entretanto, Allan Kardec é imortal e a sua memória, seus trabalhos, seu Espírito estarão sempre com os que empunharem forte e vigorosamente o estandarte que ele soube sempre fazer respeitado.

Uma individualidade pujante constituiu a obra. Era o guia e o fanal de todos. Na Terra, a obra subsistirá o obreiro. Os crentes não se congregarão em torno de Allan Kardec; congregar-se-ão em torno do Espiritismo, tal como ele o estruturou e, com os seus conselhos, sua influência, avançaremos, a passos firmes, para as fases ditosas prometidas à Humanidade regenerada.

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26/04/2010 00:48

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